Contra-Revolução Monárquica e contradições republicanas
No âmbito da conturbada situação política que se seguiu à chamada Revolta de Santarém, o conhecimento de uma mencionada cumplicidade existente entre o Governo de Tamagnini Barbosa e os vultos republicanos envolvidos na dita revolta terá levado os próceres das Juntas Militares a concretizar os seus, até então inconfessados, desígnios de restauração da realeza em Portugal. Em consequência, a 19 de Janeiro, na cidade do Porto, reunida toda a guarnição militar no Largo do Monte Pedral, deu-se o acto formal de restauração da Monarquia. As «cerimónias» decorreram sob a presidência de Henrique Mitchell de Paiva Couceiro (o já referido cabecilha das Incursões Monárquicas), personalidade que, a partir de então, passou a intitular-se Regente do Reino de Portugal, em nome de D. Manuel II. No seguimento, várias outras cidades do norte hastearam a bandeira azul e branca, ficando a nação portuguesa dividida em dois regimes, com uma linha divisória sensivelmente marcada pelo curso do rio Vouga. Estava assim implantada a chamada «Monarquia do Norte». Em Trás-os-Montes, a cidade de Chaves permanecia, porém, como um importante e significativo baluarte republicano.
Perante tão graves acontecimentos, o Presidente Canto e Castro decretou o estado de sítio, para vigorar em todo o país por trinta dias. Por seu turno, o Chefe do Governo, a 21 de Janeiro, diante de uma enorme manifestação republicana que se concentrava junto às portas do Ministério do Interior, fez um apelo para que o povo republicano de Lisboa pegasse em armas e combatesse os monárquicos, inimigos da República. Este mesmo povo, fiel aos ideais da República, respondeu pronta e maciçamente. Viva expressão dessa entrega generosa é o episódio seguinte:
“[…] O Sr. Alferes Sá avisa um popular que vem descalço de que não lhe será dado calçado e não poderá combater assim, mas ele replica com energia: − Não faz mal; arranjarei umas botas. O que eu quero é defender a República! (O Século de 23/1/19, 1.ª página).
Vendo assim uma hoste grossa e animosa de civis a ser armada, e disso tomando fundados receios, a Junta do Sul e os dirigentes monárquicos de Lisboa, até aí expectantes, decidiram que era chegado o momento de agir. No âmbito dessa decisão, várias unidades do Exército, acompanhadas de alguns civis, na tarde de 22 de Janeiro subiram ao Monsanto e daí fizeram fogo sobre a cidade. Sob o comando do conselheiro Aires de Ornelas (primeiro representante em Portugal da pessoa do rei exilado, D. Manuel II) e do tenente-coronel Álvaro César de Mendonça (Ministro da Guerra do último Governo de Sidónio Pais) as forças realistas declararam-se então em estado de pronunciamento pela monarquia.
No início, a situação por banda dos republicanos mostrou-se muito difícil, dado que, persistindo as mais importantes unidades militares de Lisboa em manterem-se neutrais, o Governo não sabia de que armas ou forças poderia dispor para dar combate aos insurrectos. Neste impasse, o Parque Eduardo VII foi designado como local de concentração de todos os que quisessem lutar contra a sedição monárquica. Afortunadamente para a República, para ali foram afluindo civis e militares, fazendo-se estes acompanhar de algum armamento. No dia 23, não sendo ainda as forças republicanas em número suficiente para se tentar um assalto, o comandante das operações, tenente-coronel Vieira da Rocha, decidiu pôr cerco a toda a serra do Monsanto, cortando todas as estradas e caminhos que possibilitassem uma saída dos revoltosos. Travou-se então um feroz duelo de artilharia que se saldou por alguma vantagem para o lado dos monárquicos, vantagem essa que, pouco a pouco, se foi estreitando, sobretudo em função dos constantes reforços que chegavam às hostes republicanas. Durante o dia de 24 de Janeiro, sitiantes e sitiados combateram-se ainda encarniçadamente, até que, ao fim da tarde, os republicanos reuniram forças e encetaram um ataque geral, que em pouco tempo levou ao desbaratamento e consequente rendição dos monárquicos, constatando-se então que estes se encontravam esvaídos pelo longo esforço dispendido e já sem munições para as peças de artilharia.
Esta importante vitória sobre a monarquia em armas teve, como não poderia deixar de ter, repercussões fundas no plano político. E porque entre os republicanos, que tão grande feito haviam cometido, estavam, maioritariamente, partidários da República Velha, o acontecimento representava mais um firme passo na morte, já anunciada, do dezembrismo e do sidonismo, enquanto forças e ideologias actuantes. Portugal enfrentava então uma nova e diferente situação política, a qual exigia um governo representativo dos interesses dos partidos históricos da República, facto bem entendido pelo próprio elenco governativo chefiado por Tamagnini Barbosa e que, bem depressa, levou à demissão irremissível do mesmo.
O Presidente da República incumbiu então o republicano histórico e conservador, José Relvas, de formar governo. Este, movimentando-se com rapidez, apresentou, logo a 28 de Janeiro, um ministério de concentração republicana, composto por quatro republicanos independentes, dois sidonistas, dois democráticos, dois unionistas, um evolucionista e um socialista. De notar que, pela primeira vez, um socialista entrava num governo da República, circunstância que não podia deixar de estar relacionada com um ascenso social do operariado em função da sua participação, porventura decisiva, na vitória obtida contra os monárquicos, em Monsanto.
Assim formado, o Governo foi tido como representante de todas as correntes republicanas ainda em presença na cena política e teve nas Câmaras uma recepção muito favorável, colhendo aí intenções de um incondicional apoio. No entanto, persistia uma dificuldade de monta, a qual era a necessária, porém dificultosa, senão mesmo impossível, convivência com um Parlamento que datava do tempo de Sidónio e que, extinta a conjuntura que possibilitara a sua criação, já não tinha, ao momento, qualquer razão de existir. Ora este era um problema que afectava também o Presidente da República, uma vez que o monárquico Canto e Castro devia a sua eleição a esse Parlamento, agora desadequado à nova realidade política.
Entrementes, na luta travada contra a Traulitânia, as tropas da República, ultrapassando a linha do Vouga, progrediam em direcção a Viseu e a Lamego, tomando esta cidade a 10 de Fevereiro. Numa outra frente mais a oeste, também Estarreja, e a seguir Ovar, caíam em poder dos republicanos. Atacadas pelo mar, Viana do Castelo, Vila Praia de Âncora e Caminha resistiam mal às arremetidas que lhe eram lançadas. Por força de todas estas ofensivas encolhiam drasticamente as fronteiras da Monarquia do Norte. A derrocada final chegou no dia 13 de Fevereiro, vinda de dentro da própria cidade do Porto, numa acção conjunta de elementos da Guarda Republicana (à data, Guarda Real, posto que os monárquicos lhe haviam mudado o nome) e da artilharia da Serra do Pilar. Esta conjugação de esforços logrou uma fácil e rápida dominação das tropas realistas que restavam na cidade. Abriram-se as portas das prisões, a bandeira azul e branca foi arriada e o regime republicano foi oficialmente reposto. Na semana que se seguiu, caíram praças importantes como Vila Real e Mirandela, sendo ainda debelados focos de resistência que perduravam em outras localidades. Chegava assim ao fim a aventura da efémera Monarquia do Norte ou Reino da Traulitânia, assim também chamado pelo facto de alguns dos seus sequazes, armados de cacetes (traulitos), exercerem pelas ruas perseguições e sevícias sobre os seus adversários políticos. Havia sido um reino de 25 dias, eivado de sentimentos realistas que apenas haviam tocado um sector bastante restrito das populações portuenses e do norte do País.
Esta completa derrota dos monárquicos, desfazendo por inteiro quaisquer ilusões acerca da sua almejada restauração, veio reforçar a posição dos partidos históricos da República. Daí que começassem a soar, mais insistentemente e com mais força, as vozes que pediam a extinção das Câmaras Parlamentares. O Presidente Canto e Castro via-se cada vez mais perto da desconfortável contingência de ter de ser ele a promulgar o decreto de exoneração de um Parlamento que o havia elegido para o alto cargo que ocupava. Seria subtrair a si próprio a legitimidade que lhe fora conferida para o exercício do seu mandato presidencial. A herança de Sidónio continuava ainda a gerar incongruências. Consciente da delicadeza do problema, José Relvas convidou o Parlamento, na pessoa do presidente do Congresso, Zeferino Falcão, a ponderar a hipótese de ser o órgão de soberania a votar a sua própria dissolução. Todavia e como escreveu o próprio José Relvas “ […] foram tão desencontradas as opiniões que foi de todo impossível chegar a um acordo” (Relvas, José, Memórias Políticas, Lisboa, Terra Livre, 1978, vol. 2, p. 98). No entanto, na nova realidade política, as câmaras, tais como se encontravam constituídas, eram uma excrescência anormal que não poderia durar muito mais tempo. Relvas acabou por se convencer da inevitabilidade de pôr termo à situação por decreto e nesse sentido promoveu a elaboração de um projecto-lei que, para além de dissolver as Câmaras, marcava eleições legislativas para 13 de Abril de 1919. A apresentação desse diploma na Câmara de Deputados gerou uma tão forte discussão e uma tal desordem que obrigou ao encerramento compulsivo da sessão. José Relvas foi então a Belém conferenciar com o Presidente da República, ficando decidida a promulgação do decreto de exoneração. No seguimento, logo Canto e Castro fez notar a sua vontade de abandonar a Presidência da República. Significava isto que o remédio para a solução de uma crise era, em si próprio e potencialmente, fautor de uma outra crise, porventura de não menor gravidade.
Verificada a dissolução do Parlamento, de imediato os ministros sidonistas se declararam demissionários, facto que não constituiu qualquer surpresa. O Governo e o próprio Relvas estavam agora na incómoda situação de, por um lado, serem acusados de ainda albergar sidonistas no seu seio e, por outro lado, terem de se defrontar com a deserção e até com os ataques políticos destes mesmos sidonistas. A par deste tipo de dificuldades, o Governo tinha ainda de suportar as arremetidas de uma opinião pública republicana que classificava como timorata e comprometida a acção do Ministério quanto à questão de um exigido saneamento político do exército e do funcionalismo público. Em defesa do gabinete ministerial e do seu chefe, só se faziam sentir as vozes de alguns jornais como A Manhã, A Capital ou O Século. Os partidos não intervinham directamente, esperando poder tirar do imbróglio alguns dividendos políticos. Em Março, Relvas, já desiludido do seu acalentado sonho de formar à direita um grande partido conservador que contrabalançasse o poder do Partido Democrático, afirmava sentir que estava «num ponto morto da acção do Governo» (Cf. Relvas, José – Memórias Políticas, Apresentação e Notas de Carlos Ferrão, Lisboa, Terra Livre, 1978.p. 127).
Na verdade, desgastado pelo ambiente hostil que se gerara e pelas demissões verificadas que, entretanto, já não se restringiam aos sidonistas, o Governo já mal cumpria as suas funções. A 27 de Março, Relvas apresentou a Canto e Castro o pedido de demissão colectiva do seu gabinete. A sua passagem pelo poder durara apenas dois meses, facto que os bons auspícios dos seus primeiros dias não haviam vaticinado. Tal circunstância, não sendo inédita, e justamente por o não ser, transporta-nos para a conclusão de que a história do país que era então Portugal, ditada pelo jogo de forças das paixões políticas, corria vertiginosamente. Comentando a queda do ministério Relvas, dizia um jornal: “Enquanto os governos em Portugal, não tiverem senão missões políticas a realizar e não viverem senão de efémeros apoios políticos e partidários, a sua instabilidade será constante” (O Século de 27 de Março de 1919, 1.ª página).
Algo de profético estas palavras continham, mas não deixa de causar alguma estranheza que, numa altura em que com facilidade se encarava o recurso à violência como um meio legítimo para fazer vingar ideais e até como meio de assalto ao poder, se viesse à praça pública falar de estabilidade. A afirmação feita, sendo justa e moralmente defensável, abordava porém o problema pela rama. É que não se ia ao fundo da questão, reconhecendo que, para haver a tão ansiada estabilidade era necessário que ela passasse pelo Partido Democrático. Sem ele ou contra ele, o país não era governável. A sua preponderância era tão grande que mesmo quando não estava no governo era ele, afinal, que governava. O seu monopólio eleitoral e político residia no facto de ter herdado toda a rede clientelar e caciqueira do PRP e até parte da dos velhos partidos monárquicos. À luz desses condicionamentos não pode afirmar-se, com segurança, que fossem, de todo, ilegítimas as aspirações de exercício do poder por parte dos outros partidos republicanos, justo num país em que os votos eram decididos pelos cabos eleitorais. E sendo esse o verdadeiro «pomo da discórdia», note-se que, todavia, a dinâmica destes outros partidos em nada contrariava ou procurava remediar um tal estado de coisas.
Acresce que, paradoxalmente, o fenómeno da hegemonia eleitoral de um partido acabou por ser para a República um presente envenenado porque, enquanto poder, o Partido Democrático, arrostando com essa luta encarniçada dos seus adversários republicanos e com as arremetidas dos monárquicos e de outros conspiradores, teve, na maior parte do tempo, de se limitar a gerir situações de crise, dispondo de poucas ocasiões para promover uma efectiva governação. E, na verdade, sozinho na governação, nunca reuniu condições para executar com eficácia as reformas que poderiam dar consistência e estabilidade ao regime. Não houve estratégia a longo prazo que resistisse a um tal contexto político de dúvidas, de suspeições, de recusas, de fraccionamento partidário, de ameaças, de quedas de governo, de revoltas. Face a este permanente cenário, as soluções de fundo foram sempre adiadas.
O problema, tal e qual assim colocado, terá sido bem compreendido e avaliado pelos dirigentes partidários republicanos, os quais, no entanto, enleados em sectarismos e antagonismos nunca resolvidos, jamais se empenharam na construção de soluções alternativas, duradouras e eficazes, nem mesmo quando a elas foram directamente chamados. Esta foi uma insanável contradição que permaneceu, com pequenas nuances, por todo o tempo da República, vindo a ser uma das causas principais, senão a principal, da sua queda, podendo quanto a isso afirmar-se que os grandes inimigos da República não foram, afinal, os monárquicos, mas sim, os republicanos.
Publicado por Fernando Fava