segunda-feira, 29 de março de 2010

Memorial Republicano XVII

Aspecto actual da Sociedade de Geografia de Lisboa

O frustrado imperialismo português

Primeiro, foi a África a atemorizar os colonizadores costeiros: era negra e ignota, exalando eflúvios de desconhecido e de intimidação. Depois, o desafio da sua obscura identidade levou até lá aventureiros de origens desvairadas: garimpeiros, geógrafos, botânicos, geólogos, exploradores de ambições plurais. E toda esta casta de gente estava disposta a perder a própria alma, desde que ali ganhasse a descoberta do que, até então, se esquivava à dádiva do exposto e do entregue Primeiro, foi o susto de irromper em clareiras inesperadas, como se do chão se desprendesse o aroma activo da rejeição e da iminência das feras. Depois sobreveio o apelo à intrepidez individual, ao desafio lançado aos próprios limites da integridade. Tudo isto era relativamente antigo – mas também relativamente politizado, pois que a Europa já há muito havia ultrapassado a casta idade da inocência … Aos jornais e revistas de referência da Grã-Bretanha começaram a chegar, entre 1840 e 1873, as narrativas circunstanciadas das deambulações do missionário inglês David Livingstone, que fizera o reconhecimento do rio Zambeze, da lago Niassa, dos territórios do Tanganica e que se abalançara a demandar as nascentes do Congo. Em 1867, inesperadamente, a Europa foi informada de que a região de Kimberley, no meridião africano, se fazia notar pela descoberta das suas imensas jazidas diamantíferas. Os testemunhos vertidos em ouvidos profanos pelo boca-a-boca dos intrépidos regressados, somados às novidades que se foram escrevendo em revistas universitárias ou de simples divulgação, contribuíram para a lenta mudança da imagem do continente africano. A África deixou de ser identificada com o exótico continente dos miasmas doentios, com o ninho da fauna desconhecida e potencialmente perigosa, com o azulejo pitoresco de etnias locais extravagantes. Passou a ser vista, pelo contrário, como o equivalente da Terra Prometida, pronta a resgatar a angústia recessiva e paralisada do modo europeu de produção capitalista.

E Portugal? Qual era a sua resposta às novas condições e apetites da vocação colonialista? O país herdara do passado a “doutrina do pacto ou sistema colonial”. Tal doutrina era praticada por todas as potências colonialistas ou colonizadoras do tempo. Reservava-se para as metrópoles, nos seus termos, o exclusivo da transformação das matérias-primas coloniais. Isto significava que as colónias não poderiam proceder à sua industrialização, transformando os próprios recursos. Esse benefício ficava reservado, em exclusivo, para as metrópoles. A vocação da economia autóctone ficaria prisioneira de uma recolecção puramente agrária. Mas a verdade é que Portugal revogara em 1808, de forma explícita, esta doutrina. A transferência da Corte para o Rio de Janeiro, sob o pavor da invasão do exército de Junot, na primeira acometida francesa, saldara-se por uma abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. Se antes as frotas mercantes oriundas do estrangeiro tinham obrigatoriamente de aportar a Lisboa, para aí realizarem as suas cargas e descargas, a partir de então passaram a rumar aos portos brasileiros, concluindo aí os seus negócios. Esta subalternização metropolitana agravara-se em 1811, quando se franquearam todos os portos ultramarinos ao comércio internacional. Porém, as sucessivas governações portuguesas não fomentaram a fixação de contingentes demográficos lusos no interior das possessões coloniais. A revolução de Setembro de 1836, através de Sá da Bandeira, procurou definir as regras gerais de um futuro regime de ocupação. Mas o setembrismo foi um fogo-fátuo. E tudo continuou entregue ao santo remanso da sonolência. Pois não é espantoso que um país de tradição colonialista, iniciada nos finais do século XV, só em 1875 tenha criado, em Lisboa, a sua Sociedade de Geografia?

Portugal secundou como pôde a “corrida a África” que as restantes potências europeias desencadearam, logo que se aperceberam do manancial de riquezas que o continente negro albergava no seu seio. Mas podia menos do que qualquer uma das restantes. Por isso, o nosso imperialismo quase não merece tal nome. Toda a tradição lusitana de transferência de contingentes demográficos se fazia através da travessia do Atlântico, fixando-se no Brasil, em termos permanentes ou episódicos. E, por outro lado, as finanças públicas permaneciam, como sempre, anémicas e desequilibradas. Era impossível, porém, ignorar o desafio. Por isso, a Sociedade de Geografia, sob o comando de Luciano Cordeiro, irá organizar as expedições ultramarinas de Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, entre 1877 e 1878. A expedição de Serpa Pinto teve o condão de demonstrar que entre Angola e Moçambique existiam linhas de continuidade que possibilitavam sonhos de ampliação territorial. Com base nisto iria nascer um sonho cor-de-rosa. Na altura ninguém poderia saber que esse sonho viria a transformar-se num dos nossos mais angustiantes pesadelos.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem