quinta-feira, 8 de abril de 2010

Memorial Republicano XXVI

Esta imagem é uma reprodução truncada de um desenho satírico da autoria de Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, publicado no nº 282 do jornal Pontos nos ii, de 20 de Novembro de 1890. Nele se vê John Bull (a Grã-Bretanha) disparando, a partir de África, o seu Ultimatum sobre o velho e vacilante Portugal, representado junto à Torre de Belém. Ao lado está desenhado o novo rei D. Carlos, procurando evitar que a sua coroa lhe caia da cabeça...

O Ultimatum

Quando Portugal, através das manobras diplomáticas de Barros Gomes, procurou suscitar uma “inversão de alianças”, substituindo a Grã-Bretanha pela Alemanha como potência aliada no desenvolvimento de projectos colonialistas, não curou de obter garantias formais de fidelidade futura. Firmou-se um convénio, que nos era favorável, e imaginou-se que ele vigoraria, em interpretação extensiva, para todo o futuro horizonte das nossas esperanças de apropriação.

A Inglaterra logo tratou de fazer sentir a Portugal, através de numerosos memorandos e notas diplomáticas, que não se dispunha a aceitar as nossas pretensões e que nem sequer anuiria a um processo negocial tripartido, correspondente à inclusão da Alemanha no dirimir da pendência, conforme Barros Gomes chegou a sugerir. Para o gabinete de Salisbury era óbvio que a efectividade de ocupações, imposto pelo Acto Final de Berlim, não deveria confinar-se às regiões costeiras. Para que as apropriações coloniais fossem plenamente reconhecidas, era necessário que se implantassem missões, postos administrativos e guarnições militares nas regiões mais sertanejas. Esta obrigatoriedade jogava claramente contra a situação portuguesa, atendendo à sua extrema e irrecuperável penúria financeira.

Este azedo diálogo entre Portugal e a Grã-Bretanha decorreu sigilosamente. A opinião pública ignorava totalmente a gravidade da situação, uma vez que apenas uns raros jornais republicanos aludiam, em tom vago, às divergências anglo-lusas. Cecil Rhodes, atentíssimo à dinâmica dos interesses em jogo, tratou de alcançar, no terreno, as vantagens requeridas pela grandeza quase infinita da sua ambição. Logo se apercebeu que o seu projecto requeria imperativamente que o território dos Matabeles, entre o Limpopo e o Zambeze, passasse para a órbita britânica de influência, para que se consumasse no futuro o projecto ferroviário de ligação entre a colónia do Cabo e a capital do Egipto. Se vingassem as esperanças lusas do mapa cor-de-rosa, estariam comprometidos os eixos de expansão em que assentava o plano de Rhodes. Por isso, a Grã-Bretanha não descurou o estreitamento de relações com o rei dos Matabeles, Lo Bengula, com quem veio a estabelecer tratados de paz e de amizade. A “nossa mais antiga aliada” tratou também de armar e municiar tribos hostis ao domínio português. Foi o caso da comunidade indígena dos Macololos, na região do Chire. Os agentes de Cecil Rhodes aconselharam o rei matabele a invocar direitos sobre o “país” dos Machonas e sobre uma vasta zona adjacente, contígua ao planalto de Manica, em pleno território moçambicano, notificando Lisboa de que tanto os Matabeles como os Machonas se encontravam sob a sua protecção. Era um golpe mortal que assim se desferia sobre o róseo sonho português de criar “um novo Brasil em África”. A coroar todo este cuidadoso planeamento, o governo inglês concedeu pulso livre à Chartered de Cecil Rhodes para irromper e se impor nas vastíssimas zonas de que nasceriam as Rodésias.

A contestação de Portugal foi selectiva. Procurou contrariar os direitos britânicos de protectorado sobre os Machonas e fez seguir para o Alto Chire expedições militares, chefiadas por Serpa Pinto e por Henrique de Paiva Couceiro. Era dito, nos documentos da diplomacia, que Portugal apenas desejava construir uma via férrea que unisse o Niassa ao Zambeze. Mas a Grã-Bretanha desconfiava que os meios militares utilizados sobre territórios reclamados pela Chartered encobrissem o ardil de erigir uma situação definitiva e inapelável.

Em Outubro de 1889, Portugal vibrou com a vitória militar alcançada por Serpa Pinto e por João de Azevedo Coutinho sobre os Macololos. O governo inglês rugiu de indignação, mas Barros Gomes, supondo-se suficientemente protegido por Bismarck, acumulou silêncios e recorreu a várias manobras de dilação.

A 11 de Janeiro de 1890, o ministro plenipotenciário britânico acreditado em Portugal, Mr. Petre, entregou ao governo português um lacónico texto, com estes dizeres: “O que o Governo de Sua Majestade deseja e em que insiste é o seguinte. Que se enviem ao governador de Moçambique instruções telegráficas imediatas, para que todas e quaisquer forças militares portuguesas, actualmente no Chire e nos países dos Macololos e Machonas, se retirem. O Governo de Sua Majestade entende que, sem isto,as seguranças dadas pelo governo português são ilusórias. Mr. Petre ver-se-á obrigado , à vista das suas instruções, a deixar imediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma resposta satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio de Sua Majestade Enchantress está em Vigo esperando as suas ordens. Legação Britânica, 11 de Janeiro de 1890”.

A esta nota diplomática foi dado o nome de Ultimato Inglês. Começou aqui, verdadeiramente, o colapso da monarquia constitucional portuguesa.