sexta-feira, 25 de junho de 2010

Memorial Republicano LII

(Presos políticos no tempo da ditadura de João Franco)

"Uma Ditadura de Sangue e de Suborno"

É imperioso que se sublinhe infatigavelmente esta realidade: a ditadura de João Franco foi favorecida pelo rei D. Carlos, que a desejava ardentemente, apesar dessa manifestação de excepcionalidade legal vir ao arrepio da vontade de todas as formações e sensibilidades políticas. E esta ditadura significou no país a instabilidade, a insegurança, a violência e o atropelo do mais vago vislumbre de constitucionalidade. A visita que o chefe do governo fez ao Porto, em 17 de Junho de 1907, deu origem a episódios de permanente tumulto. Coimbra recebeu a passagem do comboio oficial mimoseando-o com o arremesso de indizíveis coisas. No regresso a Lisboa, finda a visita, viveram-se momentos de uma previsível contestação, tendo-se imediatamente travado, na estação do Rossio, as mais graves escaramuças entre populares e forças policiais. Houve vítimas mortais entre os civis. O Jornal da Noite, órgão de imprensa do franquismo, logo se apressou a declarar que todos os excessos tinham sido devidos sobretudo ao chefe republicano José Relvas e a José de Alpoim, eminência notória da Dissidência Progressista.

As constantes perturbações da ordem pública, longe de terem favorecido uma serena meditação sobre as suas causas profundas por parte de João Franco e do seu patrocinador régio, reforçou neles a vontade de tudo submeter, utilizando, na totalidade, o ferro e o fogo disponíveis. É isto que explica a saraivada de textos legais, aprovados à pressa, para ser conseguida não tanto a pacificação racional de uma situação anómala, mas antes para ser alcançado o vexame de uma capitulação perante o arbítrio daquele Poder, que quase ninguém acarinhava. A imprensa hostilizava o governo? Logo o decreto de 20 de Junho a submeteu à vigilância dos governadores civis. As datas previstas para a realização de eleições municipais ameaçavam o “quero, posso e mando” ? Fez-se à pressa o decreto de 14 de Outubro, adiando-as sine die. Havia sinais de insurreição clandestina? A réplica veio com a atribuição de competências alargadas aos Juízos de Instrução Criminal, através do decreto de 21 de Novembro, apelando para o julgamento de atentados contra a segurança do Estado. Era uma figura tão vaga, esta da abstracta “segurança do Estado”, que ninguém a sabia identificar com rigor. As autarquias revelavam-se refractárias ao franquismo? Imediatamente se dissolveram as vereações legítimas, que o decreto de 12 de Dezembro substituiu por “comissões de gerência”, aliadas do governo. Lentamente, Portugal converteu-se numa coutada desse “regedor de paróquia”, boçal e iracundo, que era João Franco. E a dignidade real sofreu a usura homóloga, o implacável embaciamento dos restos do prestígio que sobrava do passado.

Foi em ditadura que se resolveu o candente problema dos “adiantamentos à Casa Real”, embora de maneira desastrada e pouco transparente. As dívidas da realeza foram, segundo muitas vozes, francamente deflacionadas. Procurou depois estabelecer-se um encontro de contas com os montantes de arrendamentos ao Estado de propriedades da Casa de Bragança. Uma parte significativa da opinião pública contestou que o iate “Amélia” , adquirido com verbas públicas, fosse integrado no património régio. O Correio da Noite, representativo do Partido Progressista, veio falar numa “ditadura de sangue e de suborno”, não recuando um milímetro em relação à salvaguarda da figura do monarca. Este era apresentado “armado de bacamarte, atirando aos adiantamentos”.

Estava ali, à vista de todos, uma ditadura desacreditada e uma monarquia periclitante. D. Carlos decidiu vibrar-lhe mais uma machadada ao conceder ao jornal parisiense Le Temps, através do jornalista Joseph Galtier, uma entrevista no decurso da qual produziu afirmações pasmosas. Uma das mais devastadoras foi a de que dera a Franco as condições da ditadura porque nele se plasmavam “garantias de carácter”. Ou seja: o raciocínio a contrario permitia concluir que os demais governantes, passados ou potenciais, tinham sido garrotados pelo rei … por não se lhes reconhecer “carácter” !! O insulto era tão explícito e provocatório que suscitou uma hecatombe de fidelidades monárquicas. Augusto José da Cunha, antigo ministro e ex-perceptor do rei, o Par do Reino Anselmo Braamcamp Freire e um descendente do honrado Marquês de Sá da Bandeira, Faustino de Sá Nogueira, entre muitos outros que se calaram por inércia, logo vieram a público manifestar a sua decepção. Por seu turno, com a sua certeira e letal acutilância, João Chagas logo veio caracterizar o deprimente espectáculo, falando num rei que governava “contra todos os partidos e homens que o serviram”.

Era possível decair ainda mais? O futuro iria provar que sim.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem