quarta-feira, 24 de março de 2010

Memorial Republicano XII

Um Operário das Letras: Teófilo Braga

Soube lutar, amar e odiar como muito poucos. A luta iniciou-a na sua ilha natal de S. Miguel e na sua cidade açoriana de Ponta Delgada, contra as agrestes condições de uma orfandade materna ocorrida na infância; contra o desdém de uma antipática madrasta, que lhe vaticinava uma vida sem futuro; contra a ausência de conforto, tanto afectivo como económico, resultante do segundo casamento do pai e das parcimónias a que forçosamente se sujeitam as famílias numerosas; contra a descrença de um professor do liceu que disse um dia, em plena aula, que, no caso desse seu aluno, “não via moita donde pudesse sair um doutor” (e ouviu como réplica esta contundência – “isso é porque o Senhor Professor não tem faro”…). Mas o pequeno Joaquim Teófilo Braga começou a ser gente na sua ilha, onde versejou, fundou jornais e colaborou no Açoriano Oriental. Concluído o liceu, chegou-se junto do pai e disse-lhe que iria embarcar para as Américas, talvez com o fito de se dedicar ao comércio. O pai sugeriu-lhe a Universidade de Coimbra, acrescentando-lhe , porém, que a mesada iria ser muito curta.

Em Coimbra, o enfezado Teófilo estudou sem descanso e viveu estoicamente: deu explicações, compôs artigos jornalísticos remunerados e redigiu teses a outros estudantes mais abonados e adiantados. Publicou livros poéticos que deram brado, como a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras. A Faculdade de Direito prometeu-lhe um lugar no professorado superior, após o seu doutoramento, e faltou ao compromisso de uma forma deplorável. Ainda em Coimbra, travou, ombro a ombro com Antero de Quental, a mais sonora e fértil polémica cultural e literária que alguma vez entre nós se suscitou. Ambos venceram, nessa memorável "Questão Coimbrã", o “arcadismo póstumo” de Feliciano de Castilho, abrindo as portas a um romantismo social avançado, a caminho do realismo estético. Odiou a Universidade relapsa e os lentes “crassos e crúzios” (Eça dixit). Disputou depois, em Lisboa, um concurso público para a docência do Curso Superior de Letras e arrebatou o cargo de forma quase apoteótica.

Já convertido ao positivismo filosófico de Augusto Comte e Emílio Littré, passou a amar a República e a detestar o conservadorismo monárquico. E também a doar o seu convívio familiar à mulher que namorara ainda em Coimbra e que lhe daria dois filhos, aos quais brindava com brinquedos talhados a canivete, saídos amoravelmente da sua própria mão. Era agora uma figura indiscutível das hostes republicanas. Alinhava à esquerda, identificando-se com a corrente federalista, da qual aceitava a descentralização e o mandato imperativo, o jacobinismo e a intervenção estatal tributária, mas que não secundava inteiramente naquilo que ele apodava de “excessos socialistas”. Presidiu a dezenas de comícios republicanos, proferiu centenas de intervenções públicas, umas científicas ou literárias, outras de teor mais democrático, colocando ardentemente todo o seu saber ao serviço de uma imagem de Pátria sonhada, mais altiva, toucada com o barrete frígio. Era agreste e ácido na réplica e na disputa. E foi, como tal, incensado por uns e odiado entranhadamente por outros.

Metido em casa ou refugiado em bibliotecas, Lisboa habituou-se a vê-lo passar, sempre em passo rápido, sobraçando maços de papéis e transportando o inevitável guarda-chuva, a sua caricaturada “malva”, a caminho do vulgar transporte público. Trabalhou incansavelmente, tanto antes como depois de ocorrer o seu pungente drama pessoal, quando perdeu os dois filhos, em 1886 e 1887. Fazia render o tempo entrando pela noite dentro. Hábil e avarento, arranjou um mecanismo que lhe permitia aproveitar o calor do candeeiro de iluminação para aquecer o chá com que restaurava as suas forças, nessas extensas sessões nocturnas de leitura e de escrita. Ramalho Ortigão traçou-lhe um dia o retrato biográfico, declarando lapidarmente: “Não há prelos que acompanhem a velocidade vertiginosa da sua pena”.

Admirável exemplo de incondicional dedicação ao trabalho, Teófilo Braga foi também um pioneiro em variados domínios do saber. Não existia entre nós uma história literária portuguesa baseada em métodos sólidos e ele criou-a (História da Literatura Portuguesa e Recapitulação); eram rudimentares os estudos sobre etnologia e etnografia lusitana e ele aprofundou-os (O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, A Pátria Portuguesa – O Território e a Raça , Poesia Popular Portuguesa); a reflexão sociológica primava pela nulidade em Portugal e ele iniciou-a (Sistema de Sociologia).

Depois do 5 de Outubro de 1910 ocupou a presidência do governo provisório e chegou mesmo a ser Presidente da República em interinidade, quando Manuel de Arriaga renunciou ao cargo, em Maio de 1915.

Operário das letras, denodado militante de todas as causas democráticas, infatigável investigador, temível polemista, Teófilo Braga viria a falecer em 28 de Janeiro de 1924. Não foi certamente perfeito em tudo, tanto no seu perfil pessoal como na sua singularidade intelectual. Mas só a má fé poderá negar que tenha sido um trabalhador admirável e um marco decisivo na emergência do Portugal republicano.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem