segunda-feira, 29 de março de 2010

Memorial Republicano XV

Rodrigues de Freitas, primeiro deputado da República

Homem franzino, de estatura meã, com um rosto em que se distinguia uma testa alta, uns olhos bem rasgados, perscrutadores, e um farto bigode romântico, de longas guias, extravasando as comissuras da boca, assim foi fisicamente José Joaquim Rodrigues de Freitas, o primeiro deputado republicano que se fez escutar em plena Câmara Baixa da monarquia constitucional portuguesa. Homem do Porto, tão profunda e afectivamente identificado com o pulsar da sua cidade que todos o designavam por Freitinhas, símbolo de honradez, rectidão e desinteresse no serviço de representação em que se viu investido, Rodrigues de Freitas foi uma espécie de Galaaz idealista e generoso. Chegou à convicção republicana através da percepção autêntica da sua bela alma de patriota. Militou durante anos no seio do Partido Histórico, que afivelara a pretensão, em certo momento, de representar a tendência mais inovadora do liberalismo monárquico. A prova dos factos, a lenta necrose do tecido social e a análise dos comportamentos das figuras do Poder levou-o a dissentir da peleja que travava. Não o fez, porém, sem aviso prévio. Por isso o veremos, altaneiro na sua caracterial humildade, a proferir em plena Câmara dos Deputados, em 1874, um discurso memorável, no qual sustentou a superioridade do regime republicano sobre o monárquico.

Tirara um curso brilhantíssimo, de engenharia de pontes e estradas, na Academia Politécnica do Porto. Aí coleccionou uma tal profusão de prémios académicos, que logo então se desenhou o seu futuro de pedagogo e lente da mesma escola. Interessou-se também pela Ciência Política e pela Economia, escrevendo todo um conjunto de bem fundadas considerações sobre estes objectos da sua curiosidade intelectual. Assim surgiram obras como as Breves reflexões sobre a questão bancária (1864) e a Crise monetária e política de 1876 – causas e remédios. Mas foi nos discursos parlamentares que deixou o selo mais evidente da sua competência e seriedade. Eram alocuções muito moderadas, embora inflexivelmente denunciadoras dos malefícios causados ao país. E eram também peças que mantinham afinidades com a mentalidade científica, tanto pelo seu cuidado demonstrativo como por certo escrúpulo de rejeição para com a retórica empolada e o verbalismo estéril. Foi assim que Rodrigues de Freitas ganhou o respeito e a estima dos próprios adversários políticos.

O primeiro deputado republicano da história portuguesa candidatou-se pelo Porto, nas eleições de Outubro de 1878, e, embora tivesse havido outras candidaturas da mesma área ideológica, só ele acabaria por ser eleito. Nesta disputa, o governo, procurando simular algum pluralismo, patrocinara discretamente em Lisboa a candidatura republicana de José Elias Garcia. O único resultado visível que tal expediente alcançou foi o da cisão que desde logo se tornou explícita no interior do Centro Republicano Democrático de Lisboa, através da demarcação indignada de personalidades que interpretaram este patrocínio governamental como uma intolerável intromissão e uma vergonhosa cedência. Os dois restantes candidatos republicanos – Teófilo Braga pelo círculo 94 e Manuel de Arriaga pelo círculo 96 – não obtiveram sufrágios suficientes para a eleição.

O terceiro quartel do século XIX trouxera ao país um arejo de modernização evidente, mas alcançada através do crescimento da dívida externa. Ultrapassadas as convulsões internacionais de 1870 e de 1871, a Europa entrara em bonançoso pousio, seguindo-lhe Portugal o exemplo. Este abrandamento de tensões traduziu-se, entre nós, por um clima de tolerância em relação às organizações e instituições de oposição. Por isso, Rodrigues de Freitas não deixou de saudar, num dos seus discursos, o bom senso e o espírito de tolerância com que as regiões do Poder tratavam os centros republicanos. Por outro lado, este clima de franco pacifismo não apenas convinha a um movimento republicano que apenas ganhava expressão nas grandes cidades, como ainda coincidia com o significado do historicismo positivista. Os adeptos do positivismo entendiam que o desenvolvimento histórico transitava necessariamente por estádios de evolução que haveriam de transportar as colectividades das iniciais instituições “teocráticas” às finais instituições “científicas”, através da mediação intermédia e provisória das instituições liberais, tidas como “metafísicas”. Assim sendo, não subsistiam razões para estratégias de revolução ou de confronto. Tudo se jogava no campo da conversão pedagógica das mentalidades. O bom republicano teria apenas de difundir aos ignaros a sua Verdade, aguardando tranquilamente que o Tempo cumprisse a sua promessa, fazendo cair na mão expectante dos republicanos o fruto, finalmente maduro, da República sonhada. José Joaquim Rodrigues de Freitas foi o exemplo mais acabado desta leitura da realidade. Conciliador mas também firme, dialogante mas também afirmativo, justo, impoluto e humanista, ele foi decerto o grão-paladino dessa Távola Redonda republicana, vivendo ainda o sonho ingénuo dos começos.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem