quarta-feira, 24 de março de 2010

Memorial Republicano XI

O Republicanismo e o Socialismo: Teófilo Braga e Antero de Quental

Que lugar ocupava a teoria socialista na época da propaganda republicana? Esta questão não pode ser esclarecida sem que nos lembremos que os oradores das Conferências Democráticas do Casino lisbonense, em 1871, estabeleciam com naturalidade a equivalência entre o republicanismo e o socialismo. A República não viria a ser mais do que a fórmula constitucional de um regime sob o qual a equidade económica e o império da justiça social se afirmariam com toda a evidência. Os mais aguerridos clubes republicanos dos primórdios do movimento reclamavam uma orientação federalista similar à dos comunards parisienses e à dos republicanos espanhóis da revolução de 1868. Estes homens reviam-se na austera denúncia da exploração do trabalho com que Proudhon esmaltava os seus evangelhos sociais ; admiravam a indomável combatividade de Auguste Blanqui, que passara atrás das grades a maior parcela da sua vida; citavam frases ou passagens de obras de Fourier e Louis Blanc, de Cabet e Saint-Simon; aventuravam-se até a apontar como luzeiros Karl Marx e Engels, que raramente teriam sido directamente lidos por algum deles.

Mas esta aparente confraternidade já revelava algumas fissuras. Quando Antero de Quental escreveu a Teófilo Braga, tentando convencê-lo a juntar-se aos homens do Casino, a argumentação utilizada apelava para lógicas de unidade que não correspondiam ao íntimo pensamento de ambos. Teófilo, ainda em Coimbra, seguiu atentamente a apresentação anteriana das conferências através do relato, crítico e reticente, de republicanos que foram ao Casino com profundas prevenções e que logo se apressaram a mandar-lhe missivas detalhadas. Um deles, Carrilho Videira, é peremptório: Antero teria sido recebido pelo público com grande frigidez; exprimira-se aos solavancos e sem brilho; na plateia, quase não se vislumbravam operários; e o destinatário, Teófilo, só fizera bem por ter decidido não seguir para Lisboa.

O futuro iria dizer que a leitura da fenomenologia social e da filosofia da história do republicano Teófilo era bem distinta da que defendia o seu conterrâneo Antero. Se o primeiro empolava a resposta política, o segundo opunha-lhe o primado do económico. Para Antero de Quental o proletário não devia pactuar com artifícios eleitoralistas, uma vez que as eleições se identificavam com o canto de sereias da burguesia ávida e manobradora. Mas a isto replicou Teófilo que sem uma porfiada aprendizagem democrática, sem o envolvimento do trabalhador no jogo normal das opiniões presentes num Estado plural, jamais se conseguiriam superar as carapaças do atavismo e de cerrada ignorância das massas. Por outro lado, Antero opinava que o proletariado era o parto medonho da indústria mecânica contemporânea, tratando-se, pois, de uma realidade sociológica inteiramente nova, em rebeldia visceral contra o seio satânico em que tinha sido gerada. Era inevitável, desta maneira, que se travasse o mortífero embate entre a burguesia exploradora e o proletário explorado. Mas Teófilo Braga replicava que a burguesia nascera a partir da emancipação das servidões senhoriais da gleba medieval. O burguês era o filho do camponês subjugado ao senhor feudal que, aproveitando conjunturas históricas e lutas de hegemonia entre monarcas e terratenentes, se promovera pelo estudo, investira poupanças magras, negociara com acerto e finalmente se emancipara de submissões antigas. Assim, o burguês era o irmão bem sucedido do antigo servo medieval. Apresentar a oposição entre ambos como inelutável era fazer a apologia da guerra fratricida, do dissídio dentro de um mesmo ramo familiar.

Entende-se agora que o destino político de Teófilo Braga viesse a ser bem distinto do que coube a Antero de Quental, de quem se iria tornar adversário irredutível e detractor implacável. Aproveitando a inflexão radicalizadora dos anos 70, Antero irá receber em Portugal os delegados espanhóis da Internacional Operária, avançando para a fundação do Partido Socialista, em 1875. Teófilo, por seu turno, irá prosseguir uma infatigável doutrinação republicana, passando a constituir a referência mais segura e mais prestigiada dos homens que ergueram o Partido Republicano, entre 1876 e 1883.

Optar por um ou outro é hoje uma tolice. Admirar os dois é hoje um dever.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem