quinta-feira, 8 de abril de 2010

Memorial Republicano XXXVII

O Príncipe dos Vencidos

Para que possamos compreender a fase final da monarquia portuguesa torna-se necessário entender claramente o pensamento político de D. Carlos, o penúltimo rei português. Antes dele reinara D. Luís, seu pai. Foi uma figura singular e dele se poderá dizer que nenhuma outra cabeça coroada interpretou melhor em Portugal o princípio anglo-saxónico que aconselhava aos monarcas que reinassem, mas se abstivessem contudo de governar. D. Luís era um rei artista e culto, como o viria a ser D. Carlos. Como melómano inveterado, gostava que o reconhecessem como bom executante de violoncelo. Dominando com mestria a língua inglesa, devotou-se à tradução de algumas das mais famosas peças de Shakespeare. Nunca prestou grande atenção aos assuntos governativos, pelo que Fontes Pereira de Melo se queixou, pesaroso, que o rei gostava mais de conversar com os seus amigos palacianos do que reflectir consigo sobre os problemas da vida pública. O fim de vida de D. Luís foi dramático e soturno. Martirizado por uma dolorosa e longa doença, expiraria em 19 de Outubro de 1899, na cidadela de Cascais.

Os tempos que precederam a morte de D. Luís foram vividos pelo príncipe real D. Carlos em locais e companhias bem diferentes das de seu pai. A corte real do palácio da Ajuda era grave, formal e sonolenta. D.Carlos evitou-a, preferindo-lhe o Paço de Belém, onde aristocratas mais novos o rodeavam, proporcionando-lhe uma alegria de viver que certamente agradaria à jovem princesa Amélia de Orleans, com quem casara em Maio de 1886. D. Carlos foi sempre um hedonista, pouco dado a protocolos ou a espartanas formas de estar. Quando por volta de 1888 se formou em Lisboa um grupo que glorificava os prazeres da mesa e da petisqueira, e que, talvez por irónica antinomia, se baptizou com o nome de Vencidos da Vida, D. Carlos – que não o podia frequentar devido à sua alta posição – logo se confessou um “vencido suplente”. A esse grupo pertenciam aristocratas de mais alta hierarquia, como o Conde de Ficalho, o futuro Marquês de Soveral, Bernardo Pindela (que viria a ser Conde de Arnoso), o Conde de Sabugosa e Carlos Lobo de Ávila, da família dos Valbom. Como este núcleo de “gente de algo” prezava a cultura, logo tratou de incluir nas refeições de farra alguns dos mais sonantes nomes das letras e da intelectualidade do tempo, passando por cima da sua origem plebeia. Foi assim que a esse grupo chegaram Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins e Eça de Queirós, este último avocando fumos aristocratas por se ter casado com Emília de Resende, de cepa nobre. Nem todos conviviam amiúde com o principesco casal. Mas todos lamentavam aquilo que supunham ser os “excessos parlamentaristas” da monarquia coeva.

O regime, que funcionava à sombra da Carta Constitucional de 1826, ia revelando debilidades e fraquezas difíceis de recuperar. Grassava o compadrio e fervia a denúncia de negócios escuros impunes. Ninguém acreditava na autenticidade com que se faziam eleições, tão minadas elas estavam pelas falsificações reiteradas de um caciquismo potente e contumaz. Os jornais davam conta que nem sequer se poderia confiar na honorabilidade dos deputados, pois se provara que muitos deles tinham sido positivamente corrompidos por dinheiros saídos da bolsa de Hersent, um construtor francês que empreitara as obras do porto de Lisboa. O próprio Oliveira Martins, que agora pertencia ao Partido Progressista depois de uma sinuosa e comprometedora trajectória política, desejou salvar esse seu grémio partidário, através da fundação do movimento da Vida Nova, por si inspirado e comandado, dentro da lógica de uma filosofia política incompatível com o cartismo e com as tradições liberais da monarquia. É possível que a designação do grupo – Vencidos da Vida (Nova) – se relacionasse com esta cartada, jogada e perdida por Oliveira Martins. Tudo isto nos explica o olhar esperançoso com que os vencidos contemplaram o príncipe real D. Carlos. Fora o seu pai, D. Luís, que permitira o declínio da monarquia, pela indiferença revelada em relação ao espectáculo indecoroso daqueles famigerados dias. Era esta, certamente, uma leitura mecânica, simplista , redutora. Mas ela impunha-se desesperadamente àqueles que desejavam encontrar uma saída para o atoleiro monárquico. Era imperativo, era vital, na leitura dos vencidos, que D. Carlos viesse a ser o antónimo político do seu agonizante progenitor. Seria isto possível? O futuro o iria dizer.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem