Dezembrismo / Sidonismo / República Nova
Os nomes citados no título têm servido para classificar um período curto, mas controverso da nossa história, e, todavia, são palavras que encerram conteúdos diversos e até contraditórios: Dezembrismo, o movimento revolucionário em si e os seus valores, diametralmente opostos aos da União Sagrada; Sidonismo, a dinâmica política que se gerou, fortemente centrada na figura do chefe e abrangendo o culto a ele prestado; República Nova, a expressão tão cara a Sidónio Pais e que servia para nominar as suas intenções de destruir o regime anterior, ao qual chamava, por antonímia pejorativa, República Velha. Reclamando-se sempre republicano, Sidónio queria, afinal, uma República afeiçoada à sua pessoa e ao seu projecto pessoal de poder. Daí que, no governo saído da Junta Revolucionária, o “Chefe” abocanhasse uma grossa fatia de poderes, acumulando a chefia do mesmo com as pastas da Guerra e dos Negócios Estrangeiros. Neste primeiro executivo, Machado dos Santos, o herói aplaudido e consagrado do 5 de Outubro de 1910, foi Ministro do Interior.
Pouco tempo volvido, o Presidente do Ministério acumulou as suas funções com as de Presidente da República, isso até à eleição de um Chefe de Estado, tudo nos termos de um decreto governamental com data de 27 de Dezembro desse ano de 1917. Estavam assim dados os primeiros passos para a instauração de um presidencialismo que viria a ser uma das marcas fortes do regime sidonista e que mereceria a Sidónio o apodo de Presidente-Rei, concedido pelo génio de Fernando Pessoa. Faltaria então institucionalizar o sistema, o que seria tentado, porém de forma incipiente e atabalhoada, através de decretos, sem que uma nova constituição viesse a consagrar toda essa idealizada construção política.
À revolução dezembrista ou, melhor, ao sidonismo, colaram-se os católicos e os monárquicos. A primeira motivação de uma tal atitude, era, inequivocamente, o profundo ódio que ambos votavam à República e, acima de tudo, ao afonsismo. Mas, naturalmente, havia segundas intenções: por parte dos católicos havia a simples expectativa, entretanto criada, de recuperarem importância oficial e antigos privilégios; por banda dos monárquicos, governava-os o entendimento de que, no âmbito da nova situação política, o plano da luta pela restauração da monarquia, passaria, numa primeira fase, pela solidariedade com o regime de Sidónio Pais; depois, fragilizado este, estariam criadas as necessárias condições para um assalto ao poder. Sendo esta uma estratégia que obedecia às ordens do rei no exílio, D. Manuel II, não era a mesma, no entanto, consensual entre os monárquicos.
O facto é que a governação de Sidónio dava pleno abrigo a estas presunções e esperanças monárquicas. Na verdade, enquanto as cadeias se enchiam de republicanos, os altos cargos da administração pública e das instituições militares eram preenchidos com personalidades afectas à Monarquia. Com um tal aparelho administrativo e dada a natureza anti-parlamentar do sidonismo, a administração do país foi sendo feita sem programa político, com recurso a medidas avulsas ditadas por necessidades pontuais. Daí que se tivesse caído no vício de produção de uma imensa legislação de quase 2000 decretos governamentais em um ano. Era, em todo o caso, uma acção político-administrativa que estava muito longe das «facilidades» que a fraqueza dos adversários e os consensos estabelecidos na fase conspiratória e nos inícios da revolução pareciam prometer. Por outro lado, é bom não esquecer que o movimento dezembrista e o sidonismo estavam hipotecados, desde o princípio, a alguns desses consensos. Na verdade, não fora em troca de nada que os proprietários e a alta burguesia se tinham decidido a apoiar Sidónio Pais e o seu projecto revolucionário. Assim sendo, quando este chegou ao poder, logo se assistiu à liberalização dos preços dos produtos agrícolas e de outros bens e a uma repressão generalizada dos trabalhadores e das suas organizações, como forma de impedir lutas e reivindicações. Logo, logo, os sindicalistas chegaram à conclusão amarga de que nada tinham ganho com a troca do afonsismo pelo sidonismo.
Agravava-se entretanto a já calamitosa situação económica do país, com especial incidência no problema, sempre candente, dos abastecimentos dos bens essenciais e dos combustíveis. A fome grassava pelas casas e pelas ruas: era o tempo da «sopa do Sidónio», rejeitada dignamente por muitos que reclamavam, não esmolas, mas condições de existência com um mínimo de dignidade. Sobretudo nas principais cidades, um povo esfomeado continuava a assaltar as tulhas dos armazéns e dos estabelecimentos comerciais.
E quanto ao problema do conflito mundial, parecia que a palavra de ordem de «abaixo a guerra», gritada no decorrer da revolução, havia tido pleno cabimento e aceitação junto do Executivo de Sidónio, visivelmente na redução drástica dos contingentes militares de rendição das tropas no front. Sucediam-se as desmobilizações, os prolongamentos de licenças, as deserções, tudo isso explicado com base em alegadas dificuldades de transportes, face à falta de navios…, dos navios que Portugal não tinha e de que a Inglaterra não dispunha. Escusas que não foram, nem nunca serão, suficientes para eximir a ditadura de Sidónio Pais da responsabilidade moral pelo desastre português de La Lys, a 9 de Abril de 1918, acontecimento infausto convenientemente ocultado pela imprensa sidonista e censurado em outros jornais. Aliás, o ano de 1918 mostrou-se funesto para o sidonismo e para Portugal, configurando uma situação de um país em estado de guerra interna: revoltas militares; greves e confrontos com sindicalistas; sabotagens; assaltos a jornais e a sedes de organizações políticas; tumultos de toda a ordem; estados de sítio; repressão feroz da parte das polícias; as cadeias a abarrotarem de presos políticos; uma epidemia, a pneumónica, que matou mais de cem mil portugueses. O regime desintegrava-se no meio das suas próprias contradições e dos acontecimentos que já não dominava. Uma situação que, em editorial, o jornal O Século classificava de «anarquia mansa», dizendo que «[…] não faltando quem mande, só não manda quem pode» (O Século de 24/8/18, 1.ª página).
Abandonado pelos republicanos e pressionado e condicionado por monárquicos, particularmente por monárquicos militares, o ditador voltava-se para uma engalanada vida pública, sempre envergando a sua vistosa farda, recamada de estrelas. Daí a sua presença constante em paradas militares, recepções de soldados vindos da frente de guerra, visitas a centros de assistência e hospitais e cerimónias religiosas em que o irmão Carlyle (nome maçónico de Sidónio) ajoelhado nas igrejas, adoptava uma postura mística que tanto fascinava as senhoras. Não desprezando uma oportunidade para promover a sua imagem, o populista Sidónio cultivava a sua relação com o povo, tentando, também por essa via, manter-se no poder.
Mas também entre o povo ele tinha inimigos e eram afinal do povo os homens que se dispuseram a pôr termo à sua vida e à ditadura. Uma primeira materialização desses intentos ocorreu, a 5 de Dezembro de 1918, durante uma daquelas acções de rua em que se pretendia mostrar, sendo então alvo de um primeiro atentado de que saiu ileso. Passados poucos dias não teve, porém, tanta sorte e, teimando, contra todos os avisos e conselhos, em viajar de comboio para o Porto, marcou encontro com a “Morte”, à entrada da Estação do Rossio. Esta apareceu-lhe sob a forma de uma pistola empunhada pelo ex-combatente das campanhas de África, alentejano de Garvão, José Júlio da Costa.
Desta maneira, foi colocado um ponto final ao cidadão Sidónio Pais e à sua torrentosa irrupção na vida política portuguesa. Uma passagem que, apesar de breve, deixou marcas, e que, de alguma forma, pode considerar-se como um ponto charneira entre duas fases da história da Primeira República: o afonsismo e o pós-afonsismo.
Em jeito de síntese, diríamos que o sidonismo aparece, no contexto da República, como uma manifestação estranha de poder pessoal misturada com o exercício de uma governação confusa, imediatista, com governantes de ocasião e ao sabor das necessidades. Sem um suporte ideológico consistente, sem um programa, a sua única directriz era uma reacção à política de guerra e os seus grandes objectivos resumiam-se, afinal, ao combate a essa política e à busca de soluções para uma sequente e generalizada situação de crise, para isso deitando mão ao uso de medidas de excepção e, por natureza, anti-democráticas. O projecto vago de construção de uma nova ordem institucional e social, denominado República Nova ou Ideia Nova, baseado no carisma do chefe e pretensamente legitimado pela ligação deste ao povo, não teve oportunidade de vingar em tempo de Sidónio. Teve, porém, contornos que anteciparam as linhas mestras dos regimes fascistas que após os anos vinte proliferaram por alguma Europa e por outros lugares do mundo. E, na sua essência e na sua forma, foi uma prefiguração da conjuntura política que se instalou em Portugal após 1933 e que veio a ficar conhecida por Estado Novo. Uma retórica de cariz nacionalista, o culto do chefe, um populismo demagógico, levado ao extremo, e a presença suscitada do messianismo português, fenómeno sempre exacerbado em tempo de crise, foram ingredientes que, devidamente misturados, produziram ou ajudaram a produzir a irracionalidade colectiva e a crença e atracção pela figura do «salvador milagrosamente aparecido para salvar a Pátria das garras dos seus inimigos». Uma recorrência sebastianista que chegou a afectar cabeças bem pensantes como, por exemplo, a de Fernando Pessoa, ainda que, no caso, por pouco tempo. Em outro registo temporal, mas dando provas da sua arguta percepção da realidade e da sua finíssima e certeira ironia, Guerra Junqueiro, em entrevista ao jornal A Pátria de 1 de Julho de 1920, qualificaria Sidónio Pais de «fabricante de tragédias».
Mais à frente, veremos que, para maior desgraça de Portugal e dos portugueses, os momentos mais patéticos desta «tragédia», tiveram lugar, não em tempo de vida do «fabricante», mas após a trágica morte deste.
Publicado por Fernando Fava