O Dueto D. Carlos / João Franco (1)
Vimos anteriormente que sob a égide e apadrinhamento do monarca D. Carlos, João Franco entrara abertamente a governar em ditadura. Nesta trama, as duas personagens cimeiras da mesma, estranhamente desatentas aos sinais dos tempos e dos factos, seguiam lado a lado, na feitura e acumulação de erros, mais parecendo, com isso, apostadas em antecipar o momento da sua desdita
O rei, fazendo transbordar a sua acção para além da órbita dos poderes moderadores que a Carta Constitucional lhe conferia, descera à arena da contenda partidária e colocara-se ao lado de um dos contendores, constituindo-se assim adversário de todos os outros. Ao abandonar o seu papel de árbitro da pugna política, D. Carlos deixara de pairar acima da algazarra partidária e passara a ser o alvo principal das críticas e diatribes da grande maioria da imprensa escrita e das manifestações de rua. Por seu lado, Franco, logo numa primeira fase, cometeu o grave erro de apressar-se a, por decreto governamental, dar uma qualquer solução à candente questão dos adiantamentos de quantias à Casa Real, feitos por conta da dotação oficial, a chamada Lista Civil, solução essa que não passava de uma forma habilidosa de perdoar as dívidas da Casa Real e de lhe aumentar as dotações.
Pela polémica assanhada e o aproveitamento político já havidos em torno do assunto, fácil era ver que uma tal decisão seria mais uma enormidade política; tanto assim que até o próprio D. Carlos (principal e grande beneficiário da medida governamental) começou por recusar, parecendo-lhe que o conteúdo da resolução e o tempo de aplicação da mesma não seriam os mais apropriados. E no entanto, perante as insistências de Franco, o soberano calou as suas razões e assinou o decreto. Acto incompreensível em quem, por carta escrita a João Franco, datada de 23 de Junho de 1907, com clarividência, tinha afirmado:
“Estamos diante de uma fogueira que desejamos apagar e não se apaga lançando-lhe lenha, e é o que agora sucederia”.
Que motivações impeliram D. Carlos a sancionar o politicamente desastroso decreto, após proferir aquelas sensatas palavras? Talvez que, no caso, e à semelhança de outros casos, o exercício desmesurado do poder tenha cegado os seus protagonistas e lhes tenha dado uma virtual sensação de impunidade. Mas também era verdade que os quantitativos da Lista Civil não eram aumentados desde o tempo do trisavô de D. Carlos, o rei D. João VI, e que alguns edifícios pertencentes à Casa de Bragança eram utilizados pelo Estado sem quaisquer contrapartidas. O monarca poderá ter cedido perante esses argumentos, porventura julgando-os suficientemente pesados para abafar a inoportunidade da aplicação do referido decreto.
A verdade, porém, é que a reacção a uma tal medida não se fez esperar. Logo a rua republicana de Lisboa entrou em efervescência e toda a imprensa oposicionista desencadeou uma enorme e ruidosa campanha contra a ditadura e contra a Coroa. Nessa campanha, tomaram parte activa os dois chefes rotativos – José Luciano e Hintze Ribeiro – curiosamente esquecidos do facto de os famosos adiantamentos somente terem sido possíveis com as suas assinaturas. Então, a braços com uma enormíssima e anormalíssima agitação social, o ditador Franco entendeu adoptar medidas de excepção, designadamente o endurecimento da censura à imprensa, apreensão e fecho de jornais, intensa repressão policial, prisões e perseguições políticas. Nesta senda de violências, o braço direito do chefe do governo era o poderoso juiz Veiga (Francisco Maria da Veiga), amigo particular do rei e magistrado influente que dominava as polícias e dirigia o Juízo de Instrução Criminal, instituição que se tornara célebre pela eficácia com que reprimia os inimigos do regime monárquico. Todavia, dado a ceder aos seus ataques de mau génio, Franco incompatibilizou-se com Veiga e exonerou-o das suas funções, privando-se assim desse valioso auxiliar. A somar a tudo isto, a deserção ou o «cruzar de braços» de outros funcionários era uma espécie de gangrena que ia atingindo e paralisando o aparelho de Estado.
Publicado por Fernando Fava