quinta-feira, 29 de abril de 2010

Republicanismo e República VI

O Dueto D. Carlos / João Franco (1)

Vimos anteriormente que sob a égide e apadrinhamento do monarca D. Carlos, João Franco entrara abertamente a governar em ditadura. Nesta trama, as duas personagens cimeiras da mesma, estranhamente desatentas aos sinais dos tempos e dos factos, seguiam lado a lado, na feitura e acumulação de erros, mais parecendo, com isso, apostadas em antecipar o momento da sua desdita

O rei, fazendo transbordar a sua acção para além da órbita dos poderes moderadores que a Carta Constitucional lhe conferia, descera à arena da contenda partidária e colocara-se ao lado de um dos contendores, constituindo-se assim adversário de todos os outros. Ao abandonar o seu papel de árbitro da pugna política, D. Carlos deixara de pairar acima da algazarra partidária e passara a ser o alvo principal das críticas e diatribes da grande maioria da imprensa escrita e das manifestações de rua. Por seu lado, Franco, logo numa primeira fase, cometeu o grave erro de apressar-se a, por decreto governamental, dar uma qualquer solução à candente questão dos adiantamentos de quantias à Casa Real, feitos por conta da dotação oficial, a chamada Lista Civil, solução essa que não passava de uma forma habilidosa de perdoar as dívidas da Casa Real e de lhe aumentar as dotações.

Pela polémica assanhada e o aproveitamento político já havidos em torno do assunto, fácil era ver que uma tal decisão seria mais uma enormidade política; tanto assim que até o próprio D. Carlos (principal e grande beneficiário da medida governamental) começou por recusar, parecendo-lhe que o conteúdo da resolução e o tempo de aplicação da mesma não seriam os mais apropriados. E no entanto, perante as insistências de Franco, o soberano calou as suas razões e assinou o decreto. Acto incompreensível em quem, por carta escrita a João Franco, datada de 23 de Junho de 1907, com clarividência, tinha afirmado:

“Estamos diante de uma fogueira que desejamos apagar e não se apaga lançando-lhe lenha, e é o que agora sucederia”.

Que motivações impeliram D. Carlos a sancionar o politicamente desastroso decreto, após proferir aquelas sensatas palavras? Talvez que, no caso, e à semelhança de outros casos, o exercício desmesurado do poder tenha cegado os seus protagonistas e lhes tenha dado uma virtual sensação de impunidade. Mas também era verdade que os quantitativos da Lista Civil não eram aumentados desde o tempo do trisavô de D. Carlos, o rei D. João VI, e que alguns edifícios pertencentes à Casa de Bragança eram utilizados pelo Estado sem quaisquer contrapartidas. O monarca poderá ter cedido perante esses argumentos, porventura julgando-os suficientemente pesados para abafar a inoportunidade da aplicação do referido decreto.

A verdade, porém, é que a reacção a uma tal medida não se fez esperar. Logo a rua republicana de Lisboa entrou em efervescência e toda a imprensa oposicionista desencadeou uma enorme e ruidosa campanha contra a ditadura e contra a Coroa. Nessa campanha, tomaram parte activa os dois chefes rotativos – José Luciano e Hintze Ribeiro – curiosamente esquecidos do facto de os famosos adiantamentos somente terem sido possíveis com as suas assinaturas. Então, a braços com uma enormíssima e anormalíssima agitação social, o ditador Franco entendeu adoptar medidas de excepção, designadamente o endurecimento da censura à imprensa, apreensão e fecho de jornais, intensa repressão policial, prisões e perseguições políticas. Nesta senda de violências, o braço direito do chefe do governo era o poderoso juiz Veiga (Francisco Maria da Veiga), amigo particular do rei e magistrado influente que dominava as polícias e dirigia o Juízo de Instrução Criminal, instituição que se tornara célebre pela eficácia com que reprimia os inimigos do regime monárquico. Todavia, dado a ceder aos seus ataques de mau génio, Franco incompatibilizou-se com Veiga e exonerou-o das suas funções, privando-se assim desse valioso auxiliar. A somar a tudo isto, a deserção ou o «cruzar de braços» de outros funcionários era uma espécie de gangrena que ia atingindo e paralisando o aparelho de Estado.

Publicado por Fernando Fava

Memorial Republicano XLVII

Dissídios...

Os republicanos mais avisados sempre tiveram João Franco na conta de um déspota ambicioso e calculista. Mas talvez não previssem o arcaboiço da sua arteira demagogia e talvez não imaginassem a requintada desfaçatez da sua hipocrisia. Quando saiu finalmente no governo, como segunda figura do interregno ditatorial que avassalou Portugal entre 1894 e 1897, fez questão de garantir ao seu amigo José de Azevedo Castelo Branco que regressaria a um futuro gabinete como chefe de governo. Logo então se desenhava a falta de honorabilidade da sua palavra, uma vez que tal só poderia vir a ocorrer se Hintze Ribeiro, que o guindara ao lugar proeminente que acabara de ocupar, se visse atacado na sua chefia e subalternizado no seu estatuto hierárquico. Os desígnios de João Franco ocultavam o veneno da traição e, analisadas as suas afirmações, não é lícito duvidar da sua alma trapaceira. Primeiro, simulou diferenças de opinião com Hintze, chefe do Partido Regenerador, como se não tivesse sido o seu braço direito e o fiel executante dos objectivos ditatoriais em que ambos se empenharam. Encenou depois um grosseiro espectáculo de campónio manhoso, lançando farpas à esquerda e à direita, apresentando-se como a virgem ofendida de um puritanismo político que quadrava mal à velhacaria do seu carácter e bradando que Portugal, com o seu sistema eleitoral rotativo, “não poderia continuar a ser o ludíbrio de regeneradores e de progressistas”. Escrevera o livro ignominioso da perseguição e da tirania e agora, porque lhe convinha, empenhava-se em apresentar essa obra como saída de uma ignota e anónima autoria. Abandonou o Partido Regenerador, que sempre fora o seu, levando a reboque uma pequena patrulha de deputados.

Confrontado com a rebelião do seu antigo delfim, Hintze Ribeiro também não soube comportar-se com a dignidade que o momento exigia. Para não sofrer as arremetidas parlamentares de personalidades que tinham estado sob a sua tutoria política, dissolveu a Câmara dos Deputados e cerziu uma nova disciplina eleitoral que retirava aos republicanos e aos franquistas todas as veleidades de poderem ver triunfar candidaturas suas. João Franco descarregou sobre essa lei, de 8 de Agosto de 1901, o seu indomável furor – neste caso justo – e designou-a por “ignóbil porcaria”. Tal baptismo não iria ser esquecido no futuro próximo, até porque a opinião pública adoptou imediatamente a deselegante expressão. Alguns republicanos ficaram intrigados com os inflamados discursos do estudante que em Coimbra perseguira gatos e caloiros por noites vingativas. As denúncias dirigidas ao regime repetiam um ou outro aspecto das reivindicações democráticas e nem todos viram nelas a manobra estudada de um homem sem escrúpulos. Em 16 de Maio de 1903, João Franco inaugurou o primeiro Centro Regenerador Liberal, tornando irreversível a cisão que pacientemente engendrara.

Também o Partido Progressista viveu um episódio similar. O chefe dos progressistas era o alquebrado José Luciano de Castro, minado pelos anos e por maleitas plurais que o amarravam frequentemente a uma cadeira de rodas. Os apaniguados do seu grémio deslocavam-se expressamente ao palácio daquele mentor, à Rua dos Navegantes, recebendo aí as directrizes que lhes eram transmitidas por esse incapacitado ancião. De manta sobre os joelhos, acariciando a pelagem do gato favorito, que se lhe aninhava no colo, José Luciano perseverava numa chefia política para a qual já não dispunha de condição física viável. Um dos seus “marechais” era José de Alpoim, figura falsamente imponente na adiposidade do imenso corpanzil e na fingida severidade do duplo queixo. Tinha sido despachado para a Corte inglesa por alturas do pós-Ultimato, com a missão de reduzir ao mínimo a amplitude do vexame. Não se saiu dessa tarefa bem nem mal, pela razão simples de não se poder esvaziar os mares da afronta com a colher de chá da mais crassa inépcia diplomática. Por lá se arrastou como pôde. Fialho de Almeida, na sua ácida colectânea d’Os Gatos, sovou-o com uma das análises mais inclementes que algum dia se abateram sobre as nulidades da coetânea galeria constitucional. Alpoim era, com efeito, uma tonitruante figura de comédia bufa. Senhor de um perfil maciço e de um linguajar de rufia de viela suja, deu-se a julgar que daí lhe advinham provadas capacidades de comando. E como ainda se ia aguentando nas pernas balofas, sonhou que poderia arrasar o velhote da cadeira de rodas e do gato no regaço, herdando-lhe, talvez, a chefatura política. Era, uma vez mais, a comprovação da deslealdade, dado que Alpoim fora feito ministro da Justiça pelo habitante do Palácio dos Navegantes, no gabinete a que presidira, em 1904. Esta outra dissidência cumpriu-se em pleno parlamento, em Maio de 1905, quando nele se apreciava o concurso para a renovação do monopólio dos tabacos.

Não há palavras mais adequadas e brilhantes do que as de João Chagas para caracterizar o momento político após a consumação das duas dissidências e as consequências inevitáveis daí resultantes. Ouçamo-lo, pois, numa das suas magníficas Cartas Políticas: “A ficção da opinião pública em Portugal estava organizada pelo Estado para votar em progressistas e regeneradores, e não se compreendia parlamento português onde estes dois partidos não estivessem nitidamente representados – progressistas no governo, regeneradores na oposição, ou vice-versa. A entrada na cena política de regeneradores que não eram regeneradores (João Franco) e de progressistas que não eram progressistas (José d’Alpoim) dividiu a tal ponto o parlamento que não há governo que possa governar com ele, e este é o aspecto mais grave, mais urgente da crise monárquica, crise sem solução, porquanto sem partidos, a monarquia não pode governar com o parlamento, e sem o parlamento não pode governar mais um dia com o país”.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

domingo, 25 de abril de 2010

Republicanismo e República V

A (des)governação de Franco e a Oposição Republicana

Em Maio de 1906, foi constituído o gabinete ministerial presidido por João Franco, fruto do conchavo entre o Partido Progressista e o Partido Regenerador-Liberal, com o apadrinhamento pelo monarca, D. Carlos. Logo o novel Presidente do Conselho de Ministros fez declarações públicas, afirmando-se liberal e disposto a governar à inglesa, querendo com isso dizer que respeitaria o Parlamento e as suas decisões. Ao mesmo tempo, mostrava-se contrito por, conjuntamente com Hintze Ribeiro, ter governado em ditadura entre 1893 e 1897. Na verdade e, pelo menos, de início, João Franco conseguiu transmitir de si próprio a imagem do político combativo e honesto, um novo “messias” (mais um nos nevoentos horizontes portugueses), capaz de levar a efeito redentoras reformas e assim resgatar o regime monárquico da desgraça e da desonra a que havia chegado. No entanto, o controverso João Franco permanecia igual a si próprio, notavelmente ao afirmar que, em termos eleitorais pretendia «caçar no mesmo terreno dos republicanos» e que o ministério governaria com «main douce et ferme» para, pouco depois, na inauguração duma sede do seu partido em Alcântara, face às vaias que da rua lhe eram endereçadas por operários e outros populares, dizer: «os republicanos estão precisando de sabre da polícia como de pão para a boca».

Não revogou Franco a contestada «ignóbil porcaria», antes se serviu dela e, nas eleições realizadas a 19 de Agosto desse ano de 1906, a Concentração Liberal, sua base de apoio, obteve confortável maioria. Foram então eleitos pelo círculo de Lisboa, quatro republicanos: Afonso Costa, António José de Almeida, Alexandre Braga e João de Meneses. A abertura das cortes foi convocada para 29 de Setembro. O governo de João Franco, não obstante os apoios de que dispunha, não teve a acção facilitada. Dentro da arena parlamentar, as oposições, em especial os aguerridos republicanos, criaram impasses à obstrução à actividade legislativa, levando a discussão a centrar-se em torno de questões de forma ou de substância

por si levantadas ou aproveitadas. Fora do Parlamento, nos mentideros da política, nos jornais e em comícios, a opinião pública incendiava-se contra o governo e contra o regime. Duas grandes questões – Questão dos Adiantamentos e Questão Académica – pela emoção e impacto que causaram nos meios políticos, pela discussão rubra que geraram, pelas dificuldades governativas que originaram e pelo efeito negativo que tiveram na coesão ministerial e nos apoios progressistas ao governo, levaram a que Franco se decidisse pelo encerramento das Câmaras, em Abril de 1907. Pretendia com isso criar um compasso de espera que lhe permitisse, de acordo com intenções suas, e somente suas, reforçar o seu gabinete ministerial com mais elementos da hoste progressista.

Sem dúvida que esta actuação de João Franco era politicamente perspicaz, uma vez que visava, não só criar condições de governabilidade, como ainda estabelecer um elo mais apertado com o Partido Progressista. Daí poderia, quiçá, resultar uma fusão dos dois partidos (o progressista e o regenerador liberal) e, dessa forma, tornar-se ele, Franco, chefe de um grande partido como sempre fora sua ambição. Só que, os progressistas e nomeadamente José Luciano sentiram esse perigo e, naturalmente, colocaram-se em defesa. Nessa atitude, os notáveis do Partido Progressista, convidados ou requeridos por Franco para fazerem parte do seu executivo – Conde de Penha Garcia, António Cabral e Moreira Júnior – recusaram definitivamente tal “honra”, nada os demovendo dessa decisão, nem mesmo os bons ofícios de D. Carlos, feitos chegar através da estreita amizade que o unia a José Luciano.

Para ser coerente com declarações e promessas tão recentemente por si feitas, João Franco deveria agora renunciar ao cargo de primeiro-ministro. Todavia, sob instigação do soberano, não o fez e, com o seu patrocínio, entrou a governar em ditadura após a dissolução das Câmaras por decreto de 10 de Maio de 1907. E com isso, prosseguiriam as incongruências de um “messias” português, chamado Franco (por acinte, «mexias» posto que o «Xuão», para grande gáudio dos lisboetas, profusamente reproduzido no seu anedotário, falava «achim»).

Publicado por Fernando Fava

sábado, 24 de abril de 2010

Memorial Republicano XLVI

João Franco, o Nefasto

Não foi por acaso que certa opinião pública adversa brindou João Ferreira Franco Pinto Castelo-Branco com um depreciativo epíteto: o Isca Ardente ou Isca a arder. De face miúda, com tendência para revelar um ligeiro prognatismo, a regularidade das suas feições, sublinhadas por um bigode petulante, consentia o vislumbre de uma interioridade psicológica à tona da qual flutuavam torvelinhos de vaidade. Contavam-se episódios pouco abonatórios do seu tempo de estudante de Coimbra. Perseguia e matava gatos à cacetada; e sempre que organizava, à sombra da praxe académica, expedições de punição contra estudantes caloiros, os seus colegas ouviam-no declarar, como um duque renascentista ofendido: “Vamo-nos a uma noite de despotismo!”.

Como ministro da Fazenda do gabinete regenerador de Serpa Pimentel, organizado no primeiro turbilhão do Ultimato, aprendeu com Lopo Vaz, seu colega na pasta do Reino, os processos mais eficazes para cercear as garantias e os direitos constitucionais dos cidadãos e sobretudo para quebrar o protesto das oposições. Iniciou também aí o tirocínio da manobra política e da conspiração surda. João Franco irá aliar-se a Hintze Ribeiro, um outro ambicioso político regenerador, para minar e enfraquecer a chefia de Pimentel e para preparar a sua próxima queda e a sua definitiva desqualificação. Em consequência destes jogos florentinos, que tiveram a cumplicidade ou pelo menos a simpatia do rei D. Carlos, quando a próxima situação regeneradora se constituiu, ela já não teve a égide do defraudado Serpa Pimentel, mas orquestrou-se sob a batuta de Hintze Ribeiro, numa nunciatura premonitória de potencial Papa novo… João Franco recebeu das mãos de Hintze, no gabinete de 1893-1897, a mesma pasta do Reino que dera origem à “lenda negra” de Lopo Vaz; e, tal como ele, viria a desempenhá-la com o mesmíssimo desprezo pela dignidade cívica dos seus concidadãos. Os actos eleitorais passaram a ser sistematicamente adiados e as regras do sufrágio foram revistas de modo a convertê-lo num embuste grosseiro. Realizadas as eleições já sob a nova e crapulosa disciplina, em Novembro de 1895, as oposições recusaram-se a colaborar nessa farsa e constituiu-se, com uma chusma de “Conselheiros Acácios regeneradores”, o famigerado e mais do que ridículo Solar dos Barrigas. Bastou também que em Lisboa um pobre demente, internado em Rilhafoles, tivesse apedrejado a carruagem real e que uma bomba tivesse explodido, sem consequências físicas, num vão de escada de Lisboa, para que o governo aprovasse, em Fevereiro de 1896, uma “lei anti-anarquista” , logo baptizada pelos círculos republicanos como a “lei celerada”. A corporação policial foi reformada e singularmente reforçada nos seus poderes; os agentes passaram a gozar de tamanhas impunidades que bem se poderia declarar que eles eram completamente irresponsáveis e intangíveis no exercício das suas funções repressivas. Atacou-se também a liberdade de imprensa e foi-se ao ponto de censurar a própria Sociedade de Geografia, determinando-se que esta não poderia exprimir quaisquer opiniões sobre as políticas colonialistas do governo. Tal como em todos os regimes de força, exigiu-se também aos professores de estabelecimentos superiores de ensino que jurassem fidelidade ao Trono e ao Altar, na presença de autoridades civis e eclesiásticas.

João Franco tecia a sua teia implacavelmente, com o mau génio que mostrava em todas as situações em que se visse contrariado. Essa nota da sua personalidade neurótica, essas súbitas explosões de irreprimível cólera, não lhe retiravam a capacidade de traçar no mais fundo de si os pormenorizados planos da sua futura afirmação política. Em Fevereiro de 1897, alegando discordância em relação à nomeação recente de Pares do Reino, o gabinete avançou para a demissão. Ao abandonar o seu posto ministerial, retirando-se do ministério do Reino na companhia de José de Azevedo Castelo Branco, seu amigo e admirador, João Franco dirigiu-lhe estas palavras, infelizmente proféticas: “Agora só me tornas a ver subir estas escadas como Presidente do Conselho”. Muito havia, pois, a esperar deste apóstolo da intolerância, com alma de regedor de paróquia – assim o definiu, um dia, Guerra Junqueiro. Este antigo estudante de Coimbra que movia aos gatos, junto ao Mondego, a sua guerra santa, e espancava caloiros por noites luarentas, haveria de singularizar-se proximamente como um dos mais nefastos actores do palco político português.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Memorial Republicano XLV

José Luciano de Castro, por Celso Hermínio

Da "Coligação Liberal" ao "Solar dos Barriguinhas"

À medida que se progredia para o fim do século XIX tornava-se transparente a deriva monárquica para governos de força e fórmulas administrativas impostas ditatorialmente. D. Carlos nada fez para que esta nefasta orientação pudesse ser contrariada. Parecia render-se, pelo contrário, às doutrinações dos que – como Oliveira Martins, Carlos Lobo de Ávila, Mouzinho de Albuquerque ou Luís de Magalhães – aconselhavam a imitação do pragmatismo centralista e militarista de Bismarck e do Kaiser Guilherme II da Prússia.

O republicanismo português não foi capaz de corresponder a este repto com a clarividência da coesão e da unidade, entrando no último lustro do século XIX com as nocivas marcas da discórdia interna. Perante a longa hegemonia do Partido Regenerador e a intolerância da sua prática de poder, houve quem advogasse uma aproximação táctica aos progressistas. Eram deste parecer Eduardo de Abreu e Gomes da Silva, que preconizavam a constituição de uma Coligação Liberal, espécie de frente unitária entre o Partido Progressista e o Partido Republicano. Os círculos radicais de Lisboa, onde pontificavam homens como João Bonança, Luz Almeida, Lomelino de Freitas e Tomé de Barros Queirós, eram radicalmente contrários a tal acordo. Esta diferença de opiniões marcou notoriamente as eleições de 15 de Abril de 1894, facilitando o lamentável espectáculo de terem sido apresentadas em Lisboa duas listas republicanas, uma “negociadora”, outra “intransigente”. A espúria aliança ficou concluída no verão de 1894, em coincidência com a guinada conservadora do gabinete de Hintze Ribeiro, com João Franco na pasta do Reino. A luta de oposição - ou das oposições - agora encetada irá fazer-se através deste entendimento entre progressistas e republicanos, frequentando ambas as facções, em inusitada e suspeita confraternidade, os “comícios das gravatas vermelhas”. Tais comícios eram manifestações estranhas, tanto pela heterogeneidade dos seus arautos como pela voz predominante de José Luciano de Castro, mestre de capela deste desafinado coro a duas vozes.

Houve, contudo, círculos republicanos que repudiaram o canto de tal sereia. Estava neste caso o sector conimbricense que se reunia em torno do jornal Resistência, onde se divisavam os nomes cimeiros daqueles estudantes que haviam integrado na cidade do Mondego a retaguarda universitária dos revoltosos do 31 de Janeiro de 1891. Falamos de João de Meneses, António José de Almeida, Malva do Vale, Afonso Costa e Silvestre Falcão. E até numa cidade do interior, como Viseu, se fazia ouvir, no jornal republicano O Intransigente, a voz indignada de Brito Camacho. Também João Chagas, recordando passadas retratações progressistas, aconselhava os republicanos menos sensatos, num dos seus Panfletos (o nº 10, de 13 de Maio de 1894), a não se deixarem enganar. Apesar disto, iremos verificar que Eduardo de Abreu e Gomes da Silva, os mais vigorosos arautos desta Coligação Liberal, irão ascender, no decurso do 6º Congresso Republicano, reunido em Lisboa em inícios de Março de 1895, ao Directório Provisório desta formação política. Mas as dissensões até nesse importante órgão de cúpula eram visíveis, uma vez que Magalhães Lima e Jacinto Nunes, também eleitos, trataram de abandonar pouco depois esse mesmo Directório, negando aos aliancistas a sua colaboração.

O governo Hintze-Franco iria dar a medida das suas intenções ao introduzir profundas alterações à legislação eleitoral. Tão drásticas elas foram que toda a oposição decidiu abster-se, não apresentando candidaturas alternativas às dos regeneradores. E assistiu-se então ao pícaro espectáculo de entrar em funcionamento, na continuidade das eleições de Novembro de 1895, uma Câmara dos Deputados exclusivamente composta por regeneradores, onde se simulavam debates sem conteúdo, de mera decoração circunstancial, para se manter viva a precária ilusão de que ainda havia um longínquo esboço de constitucionalidade e de liberdade política no seio do descomposto regime vigente. A opinião pública deu a este anómalo feto parlamentar o nome que melhor lhe quadrava: chamou-lhe o “Solar dos Barrigas”!

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Memorial Republicano XLIV

Mouzinho e os "Endireitas"

O real ou suposto episódio dos “endireitas” ainda hoje apresenta zonas de sombra, embora pareça inserir-se na tendência autoritária que a monarquia portuguesa revelou após a revolta de Janeiro de 1891. Quem eram, afinal, os “endireitas”? Nas vésperas de Natal de 1898 reuniram-se na Quinta de Moreira da Maia, propriedade de Luís de Magalhães, um grupo de prestigiados cidadãos. Estiveram lá Jaime de Magalhães Lima, Alberto Sampaio, Pedro Gaivão, João Franco e Joaquim Mouzinho de Albuquerque. O dono da casa acolheu os visitantes e serviu-lhes de cicerone, ao mesmo tempo que Mouzinho de Albuquerque, que de todos recebia a homenagem que quadra a um herói, para todos lia trechos do seu livro Moçambique, já no prelo. Ter-se-ia tratado de uma simples reunião de gente grada e de agrado mútuo? Talvez. Mas tal não obstou a que o “marechal” progressista António Cabral, figura de referência no jornalismo e na mundanidade política, não viesse apregoar que ali se estaria a forjar o plano de uma futura ditadura, afecta ao poder real. Com efeito, Luís de Magalhães andara de braço dado com Oliveira Martins, na altura em que este quisera inocular “Vida Nova” ao Partido Progressista, fazendo-o inflectir para o evangelho do cesarismo régio. O que António Cabral veio insinuar pelas tubas da imprensa foi que, tendo falhado um literato, talvez estas notabilidades confiassem em que um heróico militar não iria repetir o fiasco pretérito. Assim, estaria em marcha um plano para “endireitar” de vez a vida pública portuguesa e as anémicas finanças do Reino. Estes “endireitas” estariam a encarar Mouzinho como o protagonista de mais uma “ditadura de engrandecimento do poder real”, a triunfar de vez e sem retorno.
Seria Mouzinho “o Homem”, “o Pagem do Rei”, o “Salvador do Trono” – ele que já era “o Herói”? Imaginemos um militarão empedernido, com toda a formação tributária das casernas de cavalaria e com uns laivos de imprecisa cultura literária; acrescentemos-lhe um temperamento agreste, de uma energia quase demencial e de um estoicismo sem limites; juntemos a isto os cheiros fortes do narcisismo e os condimentos do orgulho vaidoso e mandão; concluamos o quadro com um linguajar agressivo e sem contenção, quer o seu alvo possa ser um humilde subordinado, ou um qualquer político reticente, ou até o próprio rei. Aí temos Mouzinho de Albuquerque. É assim que ele se revela nas cartas endereçadas a um amigo tão íntimo quanto reverencial. Falamos do Conde de Arnoso, secretário pessoal de D. Carlos e seu admirador incondicional. Mouzinho era também, neste momento, o incensado, o ungido pelo Paço e pelo povo. Fizera uma excepcional progressão de carreira, passando de governador militar de Gaza, onde rendera António Enes, a governador geral de Moçambique e a comissário régio. Para isto contribuíra a sua aura de valentia, a sua lenda guerreira, a sua fama de indomável lutador. A ele se devera a pacificação do império vátua, que recalcitrara contra a obediência ao poder português. Nos fins de Dezembro de 1895, alcançara o Olimpo dos bravos na luta de Chaimite, prendendo o Gungunhana. O eco desse triunfo foi tamanho que, regressado ao torrão continental português, em meados de Dezembro de 1897, foi recebido como um Deus: a família real deslocou-se expressamente para o abraçar; as recepções foram infindáveis; fizeram-se marchas gratulatórias aux flambeaux; houve torrentes de elogios na imprensa e expressões de babosa devoção por parte de jovens militares. Mouzinho alimentava desveladamente três ódios, de que eram alvo os políticos em geral, os republicanos em particular e os jornalistas por sistema. Nas missivas para Arnoso somam-se as invectivas. José Luciano de Castro é sempre referido como o “Bacoco” e os republicanos, sem distinção, são apodados de “bandalhos”. Há sempre na sua prosa uma tensão polémica e uma violência larvar que quase assustam.
Mouzinho regressou a Moçambique em Abril de 1898 para sofrer um vexame insuportável. Cedendo a pressões de José Luciano de Castro, D. Carlos promulgou, em 7 de Julho desse mesmo ano, um decreto que reduzia as prerrogativas do comissário régio. Como seria previsível, a sua resposta foi a demissão e uma carta de desagravo, dirigida ao velho José Luciano, que continha uma violentíssima diatribe e acabava assim: “eu a ninguém temo”! Voltou ao continente português e à Lisboa da politiquice em Agosto do referido ano. D. Carlos procurou aplacá-lo, nomeando-o perceptor e aio do príncipe real D. Luís Filipe.
Eram estes os antecedentes do “Herói” que os restantes “endireitas” talvez quisessem ter tido como mentor e actor principal do palco político. E a aspiração batia em uníssono com o ideário que Mouzinho exprimia na carta dirigida ao inevitável Arnoso, em 1 de Agosto de 1898: “A única solução a tudo é governar el-rei sem Cartas”. Aliás, o desiderato parecia secundar a reflexão feita por esse secretário privado de D. Carlos quando, examinando as reacções da opinião pública à nomeação do nosso Mercúrio lusitano para perceptor de D. Luís Filipe, formulava a seguinte observação: “Os tolos querem ver na nomeação uma aposentação do herói. Fortes asnos. Da situação que vai ocupar (aio do príncipe) pode ele pôr as condições aos políticos no momento psicológico”. Esse “momento psicológico” não iria surgir porque Mouzinho de Albuquerque entendeu suicidar-se em 8 de Janeiro de 1902. Ficou assim talvez truncada a história dos “endireitas”…
Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XLIII

Bernardino Machado, inimigo das ditaduras

Bernardino Luís Machado Guimarães foi o mais completo exemplo do homem civilizado, do político patriota e do pedagogo incansável. Ficou lendária a sua bonomia e esmeradíssima educação. A sua eloquente chapelada tanto saudava o Par do Reino como o mais obscuro cavador de enxada. No decurso de um longo exercício de vida pública, nem uma só vez curvou a vontade da sua razão à força bruta das ditaduras. Deixou ao seu país, como professor universitário, uma obra distinta e memorável.
Nascido no Brasil no seio de uma família aristocrática, ingressaria na Universidade de Coimbra em 1866, depois de ter feito os estudos preliminares no Porto. A sua geração académica sucederia imediatamente à de Antero de Quental e Teófilo Braga, assumindo a responsabilidade, com os seus condiscípulos e colegas desse tempo, de render a mais célebre tertúlia estudantil alguma vez acolhida pela serena cidade do Mondego.
A primeira parte da sua vida iria ser inteiramente dedicada à causa da educação. Doutorou-se em Filosofia Natural cerca de dez anos após o ingresso na Universidade, defendendo a tese Dedução das leis dos pequenos movimentos periódicos da força elástica. Passado algum tempo, vemo-lo, como lente catedrático de Filosofia, completamente devotado às tarefas da investigação e do ensino. O seu método científico diferiu saudavelmente, pela prática de um experimentalismo excepcional, da tradição retórica e medievalizante que se instalara na Universidade, mesmo em Faculdades que pretendiam cultivar saberes de exactidão. O Partido Regenerador fê-lo deputado. A sua voz ergueu-se na câmara baixa do Parlamento para tratar dos mais variados aspectos concernentes à instrução pública. Pugnou pela organização do Conselho Superior da Instrução Pública e conseguiu que ele fosse criado; reivindicou para Portugal um Ministério da Instrução Pública, que chegou a existir, embora efemeramente; impulsionou a Academia de Estudos Livres e contribuiu para a pôr ao serviço daqueles que não tinham podido fazer estudos superiores com regularidade. A devoção de Bernardino Machado a tão meritórias causas foi reconhecida quando os seus colegas catedráticos o elegeram, em 1890, Par do Reino, como representante da Universidade.

Mas 1890 foi o ano do Ultimato. Os seus efeitos contribuíram para arrefecer muitas dedicações monárquicas e há todas as razões para supor que Bernardino Machado não tenha escapado a tal erosão de crenças. Era ele encarado, pela vox populi de então, como um homem íntegro e de impecável reputação, repartindo entre as exigências da profissão e o lar feliz, ninho de uma numerosa prole, o melhor dos seus talentos e afeições. Quando se constituiu, em 1893, o gabinete regenerador chefiado por Hintze Ribeiro, tendo João Franco na pasta do Reino, Bernardino Machado foi chamado para as Obras Públicas. A sua probidade, a honradez da sua imagem, associada à boa reputação de Augusto Fuschini, davam a tal elenco governativo o desejado lustre de equilíbrio e de moderação liberal. Porém, os sequazes do cesarismo régio viriam a conseguir que o ministério inflectisse para uma recomposição de sentido autoritário, a qual se consumou quando Bernardino e Fuschini foram sumariamente derribados. Bernardino Machado retirou do episódio as devidas consequências, abandonando o Partido Regenerador. Voltou à sua Universidade para fazer singrar os estudos de Antropologia, cadeira por si planeada, e para criar nela um maravilhoso museu antropológico. As convulsões e controvérsias em que os partidos monárquicos continuaram a perseverar, bem como a reiterada desorientação das mais diversas instituições do regime, levaram Bernardino Machado a aderir de alma e coração ao Partido Republicano. Nos primeiros anos do século XX iremos vê-lo como uma das figuras cimeiras do Directório republicano e até como um dos seus mais escutados mentores ideológicos.
Em 1907 estala a crise académica em Coimbra, após a reprovação por unanimidade do candidato ao grau de doutoramento José Eugénio Ferreira, que dedicara a sua tese a Teófilo Braga, malquisto no Paço das Escolas pelo seu positivismo teórico, pela crítica que deixara escrita na História da Universidade de Coimbra e pela sua militância revolucionária. Os estudantes declararam a greve académica e João Franco irá responder com o encerramento da Universidade e com o levantamento de processos aos chefes estudantis, seguidos de numerosas sentenças de expulsão. A resposta de Bernardino Machado aos acontecimentos foi das mais eloquentes. Declarou que se excluía do magistério universitário e que só a ele regressaria quando todos os réus fossem declarados inocentes. A partir deste momento, a sua acção funde-se inteiramente com os visos do republicanismo português.

A segunda parte da vida de Bernardino Machado inicia-se, em nosso entender, com a revolução de 5 de Outubro de 1910. Teófilo Braga ocupara o lugar de presidente do governo provisório da República, mas era forçoso que fosse votado subsequentemente um Presidente para gerir, ao mais alto nível, os destinos do novo regime. Teófilo Braga e Afonso Costa, este último chefe do chamado Partido Democrático, bateram-se pela eleição de Bernardino Machado. António José de Almeida e Brito Camacho, temerosos da força dos “democráticos”, fundiram-se num “bloco” e conseguiram o triunfo eleitoral de Manuel de Arriaga. Este desaire não interrompeu a sua vida política. Ele será o nosso primeiro embaixador junto do governo brasileiro. Em 1914, pretendendo obter-se alguma acalmia entre as forças partidárias existentes, Bernardino passou a chefiar um governo de conotação menos rígida, ao qual competiu a primeira reacção às enormes repercussões que a primeira grande guerra desencadeou no contexto europeu e no plano nacional. Mas seria no plano da reacção às vertigens ditatoriais anti-republicanas que Bernardino alcançaria o seu protagonismo mais notável. Assim, agirá energicamente em 1915 contra a ditadura de Pimenta de Castro, patrocinada por Manuel de Arriaga, vindo e rendê-lo na mais alta magistratura da Nação, em Agosto desse mesmo ano. Seria deposto em Dezembro de 1917 por Sidónio Pais, trânsfuga da República e traidor confesso dos ideias que num passado próximo dissera abraçar. Bernardino Machado jamais aceitou esta usurpação de funções, vendo nela uma simples violência anti-constitucional. Considerou-se o verdadeiro e único Presidente da República, mesmo contra a opinião e a prática de outros republicanos mais transigentes. Por isso, quando voltou ao cargo, em Dezembro de 1925, na continuidade da renúncia de tais funções pelo presidente Manuel Teixeira Gomes, Bernardino Machado considerou que Portugal regressava finalmente ao veio da normalidade constitucional, finalmente reposta. Será novamente privado do seu cargo pela revolução militarista de 28 de Maio de 1926. Transigiu então em entregar o poder ao capitão-de-mar-e-guerra Mendes Cabeçada, porque o tinha na conta de sincero republicano e o julgava capaz de repor, tão rapidamente quanto possível, a autenticidade cívica, ética e política do regime. Mesmo no exílio, não perdeu uma oportunidade para mover à ditadura militar e depois ao Estado Novo salazarista a mais irredutível resistência.
Ao morrer em 1944, em Portugal, mas com residência fixa e vida pessoal rigorosamente vigiada pela polícia política, o país talvez não tenha sabido que se finava um dos mais dignos lutadores pela Liberdade e pela Democracia. É indispensável que isto hoje seja sabido e sublinhado. Tiremos o nosso chapéu à memória de Bernardino Machado, com a mesma cortesia com que ele saudava os portugueses do seu tempo, fossem eles quem fossem, do médico ao trolha, do professor ao agricultor, do carpinteiro ao funcionário público.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XLII

Rafael Bordalo Pinheiro: "A Política: a Grande Porca"

Engrandecer o poder real

Os governos monárquicos que se sucederam após a derrota do movimento portuense de 31 de Janeiro de 1891 denunciaram uma intenção dupla: por um lado, pretenderam colocar as rédeas do Poder nas mãos de homens que não pudessem identificar-se com as formações partidárias rotativas e que, por isso, estivessem menos marcados por estigmas de descrédito; por outro lado, tentaram aparentar um cariz de serviço a uma “monarquia nova”. Há em todo este processo um fundo de ambiguidade que denuncia a aspereza da luta que se travava entre os defensores da salvação monárquica por via de rasgadas medidas liberais e os adeptos do chamado “engrandecimento do Poder Real”. Num primeiro momento, talvez devido ao clamor da indignação geral, a governação apelou para personalidades que haviam preconizado as soluções mais autoritárias. Foi assim que, logo depois do Ultimato inglês, António de Serpa realizou a primeira ditadura de "engrandecimento régio", levando a reboque a figura pouco recomendável de Lopo Vaz, um arauto das restrições às garantias cívicas mais elementares. Foi também por esta via que José Dias Ferreira, em 1892, introduziu no seu governo Oliveira Martins, figura decisiva do vencidismo, propugnador de um forte intervencionismo do Paço no processo político. O apelo a Oliveira Martins revelou-se nocivo para a credibilidade de figuras “notáveis” da geringonça rotativa, mas não menos fatal para ele próprio. Bastou que ele provasse a crápula financeira de Mariano de Carvalho, antigo ministro, para que, pouco depois, fosse afastado do seu cargo, sem contemplações. Foi então que Oliveira Martins proferiu o certeiro desabafo – “emergi da cloaca ministerial” !

O reinado de D. Carlos começara mal. Nos seus tempos de príncipe real, quisera distinguir-se, em tudo – outros amigos, outro Paço, talvez outra forma de ver a monarquia – da prática constitucional seguida pela conduta paterna. O Ultimato amplificara as vociferações, dera voz à rua, fizera crescer a força dos oponentes. Os Vencidos da Vida aconselhavam-no a usar o músculo da Autoridade. Apesar disso, D. Carlos chamou Augusto Fuschini, um dos chefes da Liga Liberal, para o escutar sobre o melhor caminho a percorrer. Entre um e outro, talvez tivesse havido uma convergência: era necessário fazer uma monarquia renovada e para isso tornava-se urgente retirar relevo aos partidos vigentes e clientelas instaladas. Mas Fuschini acrescentava outros quesitos. Era também imperioso que houvesse transparência na administração, contendo despesas excessivas, punindo prevaricações, sobrepondo a justiça e a lei ao viés dos interesses. E neste ponto, segundo conta Fuschini, o rei perguntou-lhe com que gente, com que homens poderia operar esse milagre. Ao que o interpelado lhe respondeu que tal escolha só competia ao monarca. Nesse momento, D. Carlos teria suspirado, encolhido os ombros e finalmente rematado o diálogo com um descoroçoado: “Ah! …”. Era o ah! da descrença, o ah! do mais fundo e irrevogável cepticismo, o ah! de quem já possui uma resposta, de quem descobria, enfim, que só consigo e com mais um ou dois validos poderia contar.

O governo chefiado por Hintze Ribeiro, com João Franco na pasta do Reino, procurou nos inícios de 1893 convencer a opinião pública de que continuava fiel à limpidez de um cartismo honrado, de um constitucionalismo substantivo. Contou para isso com a inclusão no elenco ministerial das figuras de Augusto Fuschini e de Bernardino Machado. O primeiro sobraçou a pasta das Finanças, respondendo o segundo pela das Obras Públicas. Bernardino Machado abandonara há pouco o Partido Regenerador e mantinha a fama (e o proveito) de homem sério, pedagogo reputado e universitário prestigiado. Na sombra, porém, moveram-se as influências dos que nem por um momento transigiam com o figurino do passado, acreditando, como Oliveira Martins, João Franco, Bernardo Pindela, Carlos Lobo de Ávila e António Cândido, que o rei deveria ser a força aglutinadora do sistema. Só assim, segundo eles, se poderia anular definitivamente a ameaça do Partido Republicano, o qual, embora enfraquecido, conseguira eleger quatro deputados republicanos nas eleições de 23 de Outubro de 1892. Assim, em Dezembro de 1893, as maquinações de João Franco e Carlos Lobo de Ávila produziram a consequência de fazer tombar do gabinete Fuschini e Bernardino, ou seja, precisamente aquelas que ainda lhe salvaguardavam os créditos de constitucionalidade liberal. Foi sobretudo este conluio que revelou todo o alcance do que se tramava, agora já com Lobo de Ávila no governo. O que se tramava era mais outra ditadura, ou seja, a segunda “ditadura de engrandecimento do poder real”. Esta situação iria prolongar-se até aos começos de 1897 e traria consigo a pesada herança da supressão do pariato electivo, do alargamento dos círculos eleitorais, inviabilizando a representação das minorias, da criação do Juízo de Instrução Criminal, no qual passou a pontificar o intolerante juiz Francisco Maria da Veiga.

Avaliando a acção deste gabinete, Lopes de Oliveira diria acertadamente o seguinte: “Este ministério foi dentro do país a opressão, o arbítrio, o despotismo. O seu ideal seria pôr junto de cada cidadão um polícia, junto de cada coração uma espada, em cada boca uma mordaça, em cada consciência uma algema. Todo o seu direito foi o direito da força”.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XLI

Rafael Bordalo Pinheiro: "A Finança: o Grande Cão"

A crise global de 1891

A profundíssima crise que se abateu sobre Portugal em 1891 não foi apenas económica e financeira, mas também moral e cívica. Era o retrato fiel de quarenta anos de desgoverno administrativo e de rebaixamento político. Fontes Pereira de Melo quisera, a partir dos inícios do decénio de 50, reduzir o fosso que separava o país da realidade europeia transpirenaica. Não foi sustido neste seu desejo pela crónica penúria do Erário Público. Portugal seria regado a libras, e se estas faltassem haveriam de ser encontrados outros credores externos, talvez na Alemanha, talvez em França , talvez no Reino da Utopia… Assim se fez. Tornando-se necessário satisfazer os encargos, cada vez mais exigentes, dessa dívida externa, a governação recorreu a cargas fiscais progressivamente mais severas. Mas, para desdita dos mais fracos, correspondia à natureza do imposto fontista, liberal por essência, onerar fundamentalmente os bens de consumo e não o montante dos rendimentos. Tal método representava, sem o menor laivo de contenção, o sacrifício das economias domésticas mais débeis.

A partir de 1876, com a celebração do Pacto da Granja e a emergência do Partido Progressista, nova federação monárquica de grupúsculos minoritários, ficaram reunidas as condições para o exercício de um remodelado rotativismo. E os alcatruzes da nora do Poder passaram a chocalhar com o peso dos aspirantes às benesses orçamentais, agora repartidas entre os regeneradores e os progressistas, numa bocejante e revezada partilha. Este rotativismo acentuou a pressão sobre o sistema político de camarilhas e clientelas, condicionando igualmente a liberdade de movimentos do jogo económico, agora espartilhado pela avidez particularista das mais desarvoradas ambições. O Estado foi perdendo prestígio e credibilidade. Mas a persuasão das obras públicas e dos “melhoramentos materiais” calou durante cerca de vinte anos a voz dos sofredores, ou seja, das camadas sociais penalizadas. Identificavam-se estas com o anonimato dos trabalhadores por conta de outrém, dos pequenos e médios comerciantes e industriais e, sobretudo, dos enxames miseráveis formados por camponeses analfabetos. No plano da economia, tudo foi lento, mas inexorável: cresceu a dívida externa e interna; medraram os juros devidos e não pagos a credores cada vez mais desesperados; vulgarizou-se o expediente de firmar novos empréstimos para pagar os juros de iguais operações anteriores; depreciou-se a moeda a um tal ponto que a de prata desapareceu completamente do mercado; declarou-se a inconvertibilidade da cédula bancária; concederam-se monopólios a empresas privadas, como a dos Tabacos, para que estas pudessem ser as fiadoras de obrigações públicas; as receitas cobradas cobriram uma percentagem cada vez menor das despesas públicas; os banqueiros franceses e alemães fizeram saber que tinham os governantes portugueses na conta de maus pagadores e que, portanto, só estariam na disposição de emprestar novamente se lhes fossem anteriormente garantidas as consignações de receitas seguras; os caudais da emigração engrossaram mais do que nunca.

Foi um tumor que cresceu desmedidamente, até ao clímax do seu rebentamento, em 1891. Disseram alguns que o auge de tamanho declínio não teria sido atingido se Portugal tivesse sido poupado à falência, em Novembro de 1890, dos Baring Brothers, casa bancária de Londres que funcionava como a instituição creditícia por excelência do governo português. Também se alegou que a implantação da República no Brasil, em 1899, determinara a quebra do câmbio da moeda brasileira e a consequente redução drástica do valor dos “depósitos emigrantes”. É certo que eles funcionavam como uma almofada de amortecimento das mais diversas situações deficitárias. Porém, mesmo que tais desditas não tivessem ocorrido, pouco haveria a fazer por um país que chegara ao ponto de ter de afectar a encargos da dívida cerca de 45% das receitas públicas.

E os homens, esse capital preciosíssimo de resgate e salvação? Que homens tínhamos então para fazer face ao total descalabro? Alguns desses – e dos mais responsáveis – foram exautorados com justiça por Oliveira Martins, quando ocupou a pasta da Fazenda no gabinete de José Dias Ferreira, em Janeiro de 1892. Usando da palavra em plena Câmara dos Deputados, ele comprovou, de modo taxativo e documentalmente irrefutável, que em exercícios anteriores o Erário Público fora intencionalmente desfalcado por Mariano de Carvalho. Ao que este lhe replicou, sem negar a gravíssima imputação, que já salvara por mais do que uma vez Portugal da bancarrota… Oliveira Martins pagaria caro a sua ousadia: seria alijado desse gabinete, em Maio do mesmo ano!

1891 foi o ano em que o Banco de Portugal viu escoadas as suas reservas; em que multidões desorientadas procuraram reaver, em muitos casos sem êxito, as poupanças que haviam confiado a instituições bancárias; em que o Banco Lusitano e o Banco do Povo suspenderam pagamentos; em que companhias de referência, até então com imaculados exercícios de gestão – como a Companhia dos Caminhos de Ferro e a Mala Real Portuguesa – vieram a público confessar a verdade da sua calamitosa situação económica. 1891 foi o ano da abortada revolta do Porto. Como não acreditar que a República tivesse surgido, na arca do peito, no íntimo do coração de muitos portugueses, como o alfa e o ómega do futuro destino da Pátria?

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XL

João Chagas

O renitente degredo de João Chagas

Era um homem alto, desempenado e bem parecido. Encontrava-se prisioneiro na cadeia da Relação do Porto quando a cidade foi percorrida pelos republicanos amotinados que fizeram a revolta de 31 de Janeiro de 1891. Daí tentou seguir todos os lances da emocionante jornada, como se estivesse num “camarote de ópera”. Ninguém teria desejado mais do que ele o triunfo daquele pronunciamento. Chamava-se João Pinheiro Chagas mas todos os democratas o conheciam, mais abreviadamente, por João Chagas.

A sua família havia emigrado para o Brasil no decurso dos confrontos entre miguelistas e liberais. Cedo se deu conta que João Chagas demonstrava extraordinárias qualidades para a missão do jornalismo. Possuía um estilo literário másculo, vibrátil, servido por uma lógica irrefutável e por imagens que surpreendiam pela sua adequação à realidade. Também fazia gala de uma pouco vulgar e aprofundada cultura. Homem requintado, talvez até um pouco dado ao hedonismo, ganhou a estima de figuras cimeiras da aristocracia do tempo, como Bernardo Pinheiro de Melo, o futuro Conde de Arnoso, que lhe franqueou a intimidade do lar e lhe devotou uma sincera amizade. Veio o Ultimato. João Chagas indignou-se, substituindo a pretérita posição de jornalista neutral - ou pelo menos não enfeudado - por uma outra mais interveniente. E como, a partir de então, o campo da sua peleja se identificasse claramente com o republicanismo, João Chagas afastou-se de muitas das suas sociabilidades habituais. Assim, deixou de frequentar o domicílio de Bernardo de Melo, para que aquele amigo não se sentisse constrangido com uma militância política que só poderia ser-lhe adversa. No Porto, fundou o combativo jornal A Republica Portugueza (sic), dando guarida aos clamores de desafronta que partiam de todas as camadas sociais e, sobretudo, realçando as exortações à revolta formuladas por militares pouco graduados. Por isso, sofreu em 26 de Janeiro de 1891 uma condenação judicial que o levou à prisão, tendo sido a partir da sua cela que seguiu o rumor da revolta portuense do dia 31. Quando esta se gorou, as autoridades monárquicas consideraram-no como um dos seus mais perigosos inspiradores. Por isso, João Chagas foi julgado em conselho de guerra e condenado a quatro anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a seis anos de degredo.

Levaram-no então para Angola, cumprindo a sua pena entre Luanda e Moçâmedes. A audácia, que sempre revelara, acalentou-lhe o sonho da evasão. Falhou a primeira tentativa de fuga, mas concretizou uma segunda, a bordo do iate Adelaide, que o levou até ao Congo Belga, numa tormentosa travessia marítima. Daí partiu para Paris, onde foi encontrar numerosos conspiradores da jornada nortenha, como José Pereira de Sampaio (Bruno) e Alves da Veiga. Lá se inteirou das diligências feitas na pátria por José Falcão e dos rumores que davam como quase preparada uma segunda tentativa militar anti-monárquica. A sua impaciência, aliada ao desejo de tomar parte activa em todas as sedições ou pronunciamentos republicanos, trouxeram-no de volta ao Porto. Cumplicidades várias procuraram proteger-lhe a clandestinidade, mas o cerco policial estreitava-se dia a dia. O velho José Falcão fez-lhe chegar a oferta de o alojar e proteger no seu próprio domicílio conimbricense. Contudo, João Chagas não o quis tornar cúmplice de um acto que seria sempre ilegal e que poderia fazer dele a vítima da própria generosidade. Presumindo que não poderia proteger-se por muito mais tempo, regressou a Paris. Entretanto, no Porto, o seu jornal mudara de cabeçalho: como a lei proibia agora o uso público do vocábulo "república" , a folha A Republica Portugueza passou a aparecer com o nome A [espaço em branco] Portugueza ! Nele se estamparam artigos da sua lavra, sobretudo de conteúdo político. Regressou ao Porto uma vez mais, sob nome falso e com documentos sanitários forjados. Mas agora a sua boa estrela empalideceu, pois acabaria por ser aprisionado, talvez devido a denúncia.

Conduziram-no novamente para Angola. José Falcão já havia falecido. Tudo parecia perdido para a causa republicana. Em Luanda, a fortaleza de S. Miguel recebeu o presidiário nº 170 da Terceira Companhia, homem de letras, de prelos de jornal e de inamovíveis convicções, que aguentou sem pestanejar os motejos e as provocações grosseiras de carcerários torpes, rudes, de brutal atitude. Mais uma vez se constituiu um conselho de guerra para punir exemplarmente a sua evasão. Porém, já em plena sala de audiências, divulgou-se a notícia de que o Poder monárquico havia amnistiado os civis ligados ao movimento portuense. Tiveram de o soltar. Poder-se-ia imaginar que depois de tamanhos incómodos, vexames e perseguições, o antigo presidiário tinha chegado ao ponto de dar tréguas aos que tanto se tinham encarniçado para o neutralizar. Puro engano. Numa carta que por então escreveu, dirigida ao tenente Manuel Maria Coelho, encontramos esta solene declaração, espelho de uma vontade sem vacilações, temperada pela prova de mil adversidades: “ Vou tornar a ver a terra de que nos baniram. (…) Eu parto para novas lutas. Cada um de nós, os que entrámos honradamente neste pleito, tomou o compromisso tácito de o ganhar ou sucumbir nele. Temos na vida um intuito que a preenche. Queremos uma Pátria nova. Havemos de fazê-la”.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XXXIX

Imagens de José Falcão e de Augusto Fuschini

O último combate de José Falcão

A derrota republicana de 31 de Janeiro de 1891 podia ter representado o dobre de finados das esperanças de democratização do país. Se assim não foi, se tal não ocorreu neste intervalo de abatido desalento, o mérito pertence, em larga parte, a José Falcão. O cômputo da situação portuguesa não podia ser mais inquietante: a dívida pública rondava os cento e quarenta milhões de libras, verba verdadeiramente astronómica para o nosso poder produtivo; o montante dos juros em dívida mobilizava anualmente mais de metade da receita do Estado; a balança económica revelava-se gravemente desequilibrada; estiolavam as indústrias e as transacções comerciais; a agricultura continuava a ser destinada ao consumo familiar na maior parte do que se colhia, como nos velhos tempos do Antigo Regime. José Falcão analisou com frieza os sinais do descalabro e traçou um plano audacioso: o de reformular e revigorar o Partido Republicano, fazendo-o renascer das cinzas do recente infortúnio militar. Era necessário definir uma “política de atracção” mobilizadora dos estratos sociais e profissionais até então indiferentes ou incrédulos. Urgia apresentar o republicanismo como a única doutrina capaz de reacender a crença dos elementos sociais activos, ainda que estes pudessem querer apresentar-se como economicamente conservadores. Esta estratégia teria forçosamente de cumprir-se fora da órbita da monarquia e contra ela. Porquê? Porque, desaparecidas as respeitáveis figuras monárquicas de um duque de Loulé, de um Braamcamp ou de um D. António Alves Martins, bispo de Viseu, os serventuários da monarquia forneciam ao país o deplorável espectáculo da completa abdicação de princípios. José Falcão julgava-os assim: “Os homens de hoje são de natureza diferente. Saltaram em regra dos bancos das escolas para as cadeiras do poder passando, rapidamente, pelos empregos rendosos que, pela subserviência e intriga mais do que pelo valor e trabalho, conseguiram escalar. Não trazem convicções, nem ideais, nem ciência, nem consciência. Apenas sentem ambições desmedidas, através das quais parece pequeno tudo quanto possa saciar-lhes a sede devoradora do egoísmo. Esta horda política não recuará diante dos princípios, porque os não tem; nem das convicções dos outros, porque não conhece até o sentido da palavra. Liberdades públicas, direitos individuais serão frases com o valor que lhes ditarem os próprios interesses”.

Os protestos do Ultimato haviam gerado duas agremiações, aparentemente mais honradas do que aquelas que alimentavam a guerrilha desconexa da política de então. Uma delas tinha sido a Liga Patriótica do Norte, à qual Antero de Quental oferecera o prestígio do seu nome. A outra era a Liga Liberal. Se a primeira sucumbira rapidamente, pela deserção e desinteresse dos seus associados, esta última resistia ainda. Um dos seus chefes mais representativos era Augusto Fuschini, que conseguira congregar à sua volta, sobretudo em Lisboa, um escolhido grupo de militares, que se consideravam unidos pelo cimento da crença liberal. Por isso, o plano de José Falcão iria desenvolver-se em duas frentes: por um lado, favoreceu a divulgação, em nome dos valores republicanos, de um manifesto programático que facilitasse a credibilização desse ideário junto de camadas sociais até aqui passivas; por outro, tentou abrir negociações com a Liga Liberal e conseguir uni-la ao propósito de uma próxima revolução, desta vez sem os improvisos do fracasso do Porto. A primeira parte deste plano cumpriu-se, através da publicação do manifesto republicano de 1892. Para executar a segunda parte, José Falcão abriu um longo diálogo com Augusto Fuschini, procurando trazê-lo ao redil da República. Sabe-se que ambos se encontraram no Buçaco, logo em Setembro de 1891, sendo também conhecido o considerável volume de correspondência que entre os dois se foi trocando. Persistiram, porém, notórias diferenças de opinião: para José Falcão era inconcebível que a salvação de Portugal se pudesse fazer fora ou à margem da República; mas Fuschini acreditava na capacidade de regeneração monárquica, batendo-se pelo advento de uma “monarquia nova”.

Foi este o último combate de José Falcão. A sua decrepitude física não o prostrou, não o fez esmorecer, não o condenou à abulia dos conformados. Pouco antes da sua morte ainda escreveu este emocionante depoimento: “Não tenho ambições nem desejos. Ao meu espírito inquieto verga-o a idade, pior do que a idade – a doença! Sinto que a minha vida não será longa. Mas a Pátria desfalece. Eis mais um combatente para a luta e mais um cadáver para os abutres da terra e do céu. Irei pregar a cruzada santa, como Pedro o Eremita. Sobram-me o ânimo e a fé. Levantarei as vontades, reunirei os homens sãos e patriotas antes que a Europa, com um pontapé de desprezo neste pobre leão moribundo, acabe com uma nacionalidade de sete séculos”.

Faleceu a 14 de Janeiro de 1893 e o seu corpo foi comido pelos abutres da terra. Mas o seu espírito não foi devorado pelos abutres do céu. Manteve a incorruptibilidade subtil do Eterno, reflectido no exemplo inesquecível da sua memória.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XXXVIII

Os Vencidos e a política

Princípios de 1888 : Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho, almoça em Lisboa no restaurante “Tavares”, à Rua Larga de S. Roque, com Oliveira Martins, António Cândido e Carlos Lobo de Ávila. A mesa é farta, mesmo requintada, mas os comentários são ácidos, depressivos. O Conde fizera recentemente um discurso desalentado na Câmara dos Pares, no qual pintara a negro o futuro de Portugal: se tudo se mantivesse em tão deplorável senda, se a política continuasse a desdenhar da honradez e do imperativo moral de bem servir, se o rei teimasse em não intervir, tudo poderia estar perdido. Os restantes convivas faziam que sim com a cabeça e acrescentavam outros argumentos: pois não falhara Oliveira Martins no seu projecto de salvar o Partido Progressista das mãos grosseiras da politiquice? E não o quisera fazer através de uma lógica mais musculada e menos parlamentarista ? E todos concluíam, gravemente, que a manterem-se as praxes cartistas e os processos usuais de decisão, o país – pobre dele! – não iria aguentar.

No decurso desta refeição, talvez à sobremesa, surgiu a ideia de passarem a reunir com regularidade, agregando de futuro novos parceiros de digestão e cavaqueira. A este núcleo original adicionaram-se as figuras do Conde de Sabugosa, de Bernardo de Pindela e de Luís de Soveral, todos aristocratas e amigos do príncipe real, D. Carlos. Também foram chegando Carlos Mayer, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós. E continuaram a degustar boa comida, sempre regada com melhor bebida, pois a bolsa suportava bem tamanho esforço, e o apetite, acicatado pelo espírito de tertúlia, o exigia. Lisboa habituou-se a vê-los passar, impecáveis no porte e no esmero do trajar. O Hotel Braganza, famoso pela mundanidade e pela qualidade das suas iguarias, acolheu-os na sala de jantar, repleta de lustres e de reposteiros aveludados. O Chiado, esse, preparou-lhes um festival de má-língua. E as “hortas” dos arredores da capital viram-nos frequentar botequins escusos, fumarentos, onde se provavam fritadas de carapaus miúdos, deliciosos, à luz diurna que só o Tejo sabe oferecer, ou sardinhas assadas acabadas de sair do mar azul, mastigadas com volúpia sob latadas muito verdes. A Lisboa dos jornais e do S. Carlos enfureceu-se quando tomou conhecimento de que aquele grupo de personalidades se tinha baptizado com o nome de Vencidos da Vida. Logo Manuel Pinheiro Chagas, abespinhado, lhes contestou a designação no Correio da Manhã, tentando provar que todos se poderiam apresentar como vencedores natos. Fialho de Almeida atacou-os n’Os Gatos; Eduardo Barros Lobo, o “Beldemónio” da revista A Má Língua , submeteu-os a feroz zombaria; Marcelino Mesquita e Urbano de Castro dedicaram-lhes gazetilhas irónicas. Mas os vencidos, imperturbáveis, continuaram a juntar-se e a fazer funcionar os sucos gástricos!

A Lisboa da politiquice mobilizou-se para apurar “o que eles queriam”. Murmuravam uns que se preparavam os alicerces de um novo partido político. Diziam outros que eles se preparavam para intervir concertadamente nas Câmaras e que se devia prestar atenção aos próximos actos eleitorais. D. Carlos, o vencido suplente, seguia-os do seu reduto palaciano, com a possível cumplicidade e simpatia. Todos os testemunhos dos vencidos foram unânimes na afirmação de repúdio em relação a um explícito envolvimento partidário ou à capacidade de atracção que sobre eles poderia exercer a “petisqueira política”. Contudo, considerados individualmente, os vencidos não se reviam nas tradições constitucionais da monarquia. É de supor que o exemplo da Alemanha, trazida ao primeiro plano das grandes potências por Bismarck, os tivesse fascinado. E a Alemanha era a personificação do poder pessoal, da força derramada a partir de um topo hierárquico, da rejeição das formas de representatividade parlamentar. Como se pronunciaram alguns vencidos sobre o sufrágio universal, sobre o papel do monarca, sobre o parlamentarismo? Vejamos o que declarou Ramalho Ortigão sobre o sufrágio universal: “Dentro do campo das ficções, (…) o sufrágio popular (…) é a superstiçãozinha mais catita que aí temos”. No próprio dia da aclamação de D. Carlos, Oliveira Martins observava no jornal O Tempo que a existência de um “monarca-manequim” – só faltava acrescentar "como D. Luís"... – não se conformava com as exigências dos novos tempos. Eça de Queirós, na Revista de Portugal, ponderava que o novo rei se destacava como a única força do país. Carlos Lobo de Ávila, no jornal O Repórter, sob o pseudónimo de “Viriato”, impelia o jovem monarca para o cesarismo, dizendo: “Vossa Majestade não pode sujeitar o seu governo ao capricho das votações parlamentares”. E quando mais tarde chegou a ditadura de João Franco, ela teve o indisfarçável aplauso de Bernardo de Pindela e de Luís de Soveral.

Os Vencidos da Vida não foram um grupo político organizado. Mas eles serviram à mesa uma opinião que não poderia ter deixado de calar fundo nas futuras opções liberticidas ( e trágicas!) de D. Carlos, vítima de si mesmo e certamente também dos que acabaram por o influenciar. Mesmo que tal tenha acontecido sob a luz amorável e única de Lisboa, no remanso estival de uma latada muito verde, com o mar bem azul a espreguiçar-se em frente...

Publicado por Amadeu Carvalho Homem