Mouzinho e os "Endireitas"
O real ou suposto episódio dos “endireitas” ainda hoje apresenta zonas de sombra, embora pareça inserir-se na tendência autoritária que a monarquia portuguesa revelou após a revolta de Janeiro de 1891. Quem eram, afinal, os “endireitas”? Nas vésperas de Natal de 1898 reuniram-se na Quinta de Moreira da Maia, propriedade de Luís de Magalhães, um grupo de prestigiados cidadãos. Estiveram lá Jaime de Magalhães Lima, Alberto Sampaio, Pedro Gaivão, João Franco e Joaquim Mouzinho de Albuquerque. O dono da casa acolheu os visitantes e serviu-lhes de cicerone, ao mesmo tempo que Mouzinho de Albuquerque, que de todos recebia a homenagem que quadra a um herói, para todos lia trechos do seu livro Moçambique, já no prelo. Ter-se-ia tratado de uma simples reunião de gente grada e de agrado mútuo? Talvez. Mas tal não obstou a que o “marechal” progressista António Cabral, figura de referência no jornalismo e na mundanidade política, não viesse apregoar que ali se estaria a forjar o plano de uma futura ditadura, afecta ao poder real. Com efeito, Luís de Magalhães andara de braço dado com Oliveira Martins, na altura em que este quisera inocular “Vida Nova” ao Partido Progressista, fazendo-o inflectir para o evangelho do cesarismo régio. O que António Cabral veio insinuar pelas tubas da imprensa foi que, tendo falhado um literato, talvez estas notabilidades confiassem em que um heróico militar não iria repetir o fiasco pretérito. Assim, estaria em marcha um plano para “endireitar” de vez a vida pública portuguesa e as anémicas finanças do Reino. Estes “endireitas” estariam a encarar Mouzinho como o protagonista de mais uma “ditadura de engrandecimento do poder real”, a triunfar de vez e sem retorno.
Seria Mouzinho “o Homem”, “o Pagem do Rei”, o “Salvador do Trono” – ele que já era “o Herói”? Imaginemos um militarão empedernido, com toda a formação tributária das casernas de cavalaria e com uns laivos de imprecisa cultura literária; acrescentemos-lhe um temperamento agreste, de uma energia quase demencial e de um estoicismo sem limites; juntemos a isto os cheiros fortes do narcisismo e os condimentos do orgulho vaidoso e mandão; concluamos o quadro com um linguajar agressivo e sem contenção, quer o seu alvo possa ser um humilde subordinado, ou um qualquer político reticente, ou até o próprio rei. Aí temos Mouzinho de Albuquerque. É assim que ele se revela nas cartas endereçadas a um amigo tão íntimo quanto reverencial. Falamos do Conde de Arnoso, secretário pessoal de D. Carlos e seu admirador incondicional. Mouzinho era também, neste momento, o incensado, o ungido pelo Paço e pelo povo. Fizera uma excepcional progressão de carreira, passando de governador militar de Gaza, onde rendera António Enes, a governador geral de Moçambique e a comissário régio. Para isto contribuíra a sua aura de valentia, a sua lenda guerreira, a sua fama de indomável lutador. A ele se devera a pacificação do império vátua, que recalcitrara contra a obediência ao poder português. Nos fins de Dezembro de 1895, alcançara o Olimpo dos bravos na luta de Chaimite, prendendo o Gungunhana. O eco desse triunfo foi tamanho que, regressado ao torrão continental português, em meados de Dezembro de 1897, foi recebido como um Deus: a família real deslocou-se expressamente para o abraçar; as recepções foram infindáveis; fizeram-se marchas gratulatórias aux flambeaux; houve torrentes de elogios na imprensa e expressões de babosa devoção por parte de jovens militares. Mouzinho alimentava desveladamente três ódios, de que eram alvo os políticos em geral, os republicanos em particular e os jornalistas por sistema. Nas missivas para Arnoso somam-se as invectivas. José Luciano de Castro é sempre referido como o “Bacoco” e os republicanos, sem distinção, são apodados de “bandalhos”. Há sempre na sua prosa uma tensão polémica e uma violência larvar que quase assustam.
Mouzinho regressou a Moçambique em Abril de 1898 para sofrer um vexame insuportável. Cedendo a pressões de José Luciano de Castro, D. Carlos promulgou, em 7 de Julho desse mesmo ano, um decreto que reduzia as prerrogativas do comissário régio. Como seria previsível, a sua resposta foi a demissão e uma carta de desagravo, dirigida ao velho José Luciano, que continha uma violentíssima diatribe e acabava assim: “eu a ninguém temo”! Voltou ao continente português e à Lisboa da politiquice em Agosto do referido ano. D. Carlos procurou aplacá-lo, nomeando-o perceptor e aio do príncipe real D. Luís Filipe.
Eram estes os antecedentes do “Herói” que os restantes “endireitas” talvez quisessem ter tido como mentor e actor principal do palco político. E a aspiração batia em uníssono com o ideário que Mouzinho exprimia na carta dirigida ao inevitável Arnoso, em 1 de Agosto de 1898: “A única solução a tudo é governar el-rei sem Cartas”. Aliás, o desiderato parecia secundar a reflexão feita por esse secretário privado de D. Carlos quando, examinando as reacções da opinião pública à nomeação do nosso Mercúrio lusitano para perceptor de D. Luís Filipe, formulava a seguinte observação: “Os tolos querem ver na nomeação uma aposentação do herói. Fortes asnos. Da situação que vai ocupar (aio do príncipe) pode ele pôr as condições aos políticos no momento psicológico”. Esse “momento psicológico” não iria surgir porque Mouzinho de Albuquerque entendeu suicidar-se em 8 de Janeiro de 1902. Ficou assim talvez truncada a história dos “endireitas”…
Publicado por Amadeu Carvalho Homem