O estandarte do "Centro Democrático Federal 15 de Novembro", com as suas cores verde e vermelha, flutuou como bandeira republicana na varanda do município portuense, em 31 de Janeiro de 1891
A revolta de 31 de Janeiro de 1891
Uma das reacções que o Ultimato inglês suscitou foi a dos meios militares de mais baixa patente. Do mesmo modo que os restantes nichos sociais exteriorizaram as torrentes emocionais em concordância com a especificidade do seu protagonismo social, assim certos homens fardados, mas sem profusos galões, vieram a converter o sangramento do amor-próprio corporativo num projecto de sedição. Compreende-se que assim tivesse sido: os académicos já haviam discursado contra a “pérfida Albion”; os comerciantes já tinham retirado das montras os chapéus de coco e as bebidas espirituosas britânicas; os jornalistas já se tinham dado a expurgar das suas folhas os malditos e proscritos vocábulos ingleses, tais como meeting, whiskey ou high-life; os “vivas” e os “morras” já haviam estrondeado em paradas cívicas, formigando pelas avenidas centrais de Lisboa.
E o Exército português? Esse era monárquico nas suas mais altas hierarquias; e só o Todo-Poderoso conhece as recomendações de prudência a que devem submeter-se os postos cimeiros da servidão castrense ! Mas… e a arraia-miúda fardada? Também ela apresentava a irritação indomável dos corações ressentidos, provocada pela provação dos vexames inesperados. Foi isto que compreendeu o jornalista João Chagas, quando, no Porto, após redigir alguns linguados do jornal A República, se viu constrangido a abandoná-lo, devido à discreta resistência dos seus proprietários , temerosos com a vibração da sua palavra indignada. Chagas fundou então A República Portugueza (sic), que não foi mais do que uma espécie de cartilha da insubordinação das casernas. Aí desaguavam torrentes de depoimentos colectivos, assinados agora por “um grupo de soldados”, depois por “cinco cabos de artilharia”, mais tarde por “vários sargentos da guarnição”, proclamando aos quatro ventos ser imperioso lavar a desonra, responder ao vexame, vingar o ultraje, resgatar a vergonha. Eram, certamente, ingenuidades românticas de almas esbraseadas pela centelha patriótica. Mas valiam pela autenticidade da raiva, pelo genuíno frémito do brio, pelo desejo de remover da face do país o peso da cabisbaixa humilhação.
Em Lisboa, o Directório republicano, recentemente recomposto, não se dispunha à cumplicidade com uma dinâmica que já era explicitamente revolucionária. Um dos novos directores, Francisco Manuel Homem Cristo, na altura tenente, acabara de afastar do mando a figura tutelar de Elias Garcia. Para aquele, o que se tramava no Porto não poderia deixar de ter um epílogo desastroso, quer pelo público e ostensivo anúncio de projectos bélicos iminentes, quer pelo alheamento demonstrado por quase todos os oficiais superiores da Invicta. Em Coimbra, como nos conta António José de Almeida no seu livro Desafronta, conspirava uma aguerrida vanguarda de estudantes, que mantinham contacto com os revolucionários nortenhos através de Alves da Veiga, um dos chefes do republicanismo portuense. Essa juventude estudiosa pensava atacar os principais quartéis da cidade do Mondego, logo que houvesse confirmação, vinda das margens do Douro, da vitória militar aí alcançada, depondo seguidamente o poder nas mãos leais e veneradíssimas de José Falcão.
No Porto movimentou-se um pequeno “estado-maior civil” da revolução, acrescentando-se como mais evidentes protagonistas ao nome de Alves da Veiga, os de João Chagas, José Pereira de Sampaio, Basílio Teles, Felizardo Lima e Santos Cardoso. Pouco antes de 31 de Janeiro de 1891 as autoridades monárquicas encarceraram João Chagas na cadeia da Relação. O movimento militar iniciou-se sob o júbilo da festa e encerrou em tragédia. Foi uma tentativa revolucionária que se realizou sob o modelo da remota revolução de 24 de Agosto de 1820, também ela portuense, antes de ter sido nacional. As forças que saíram dos quartéis, comandadas apenas, ao nível da classe dos oficiais, por um alferes, um tenente e um capitão, seguiram os itinerários que os vintistas haviam trilhado, nesse distante tempo de Pátria e festa. Movimentaram-se, por entre brados, aclamações e músicas marciais, pelas ruas e lugares por onde também andaram os homens do “Sinédrio” vintista. Chegaram mesmo a proclamar um governo republicano da varanda da autarquia portuense, incluindo nele, com manifesta precipitação, nomes que nem sequer tinham sido sondados para tal efeito. Nessa varanda chegou a tremular o estandarte do “Centro Democrático Federal 15 de Novembro”, cujas cores, verde e vermelha, anteciparam as que viriam a ser adoptadas após o 5 de Outubro de 1910.
Fogacho romântico, sentimentalmente bordado com a seda da ingenuidade e da militância improvisada, a revolta nem sequer cuidou de dominar militarmente os lugares estratégicos da cidade. Nem sequer foi adoptada a precaução elementar de submeter o telégrafo às intenções da conjura. Nem sequer se curou de ocupar a Serra do Pilar, do lado de Gaia, onde se aninhavam consideráveis recursos de fogo artilheiro. Tudo se jogou no movediço território da convicção punitiva, da vontade sabedora de razões irrenunciáveis, da psicologia imediatamente reactiva que, por crer tão avassaladoramente em si, despreza cálculos, repudia artimanhas, esconjura pressentimentos de desgraça. A meio da subida da rua de Santo António, os revoltosos foram alvo, inesperadamente, do contra-ataque das forças monárquicas. Recuaram, em desconjuntada vozearia, procurando uma reorganização que se lhes negou. As últimas esperanças desvaneceram-se quando o edifício do município, que tinha dado guarida aos últimos resistentes, capitulou sob os implacáveis disparos dos contingentes fiéis ao regime vigente.
Uma derrota previsível? Decerto. Mas também – talvez sobretudo – um prenúncio, uma premonição, um símbolo, que a evolução dos factos haveria de consagrar como uma efectiva e rutilante vitória adiada.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem