O Ultimatum do povo
Na nota diplomática entregue por Mr. Petre ao governo português, nesse infausto 11 de Janeiro de 1890, não se exteriorizava apenas o desprezo de uma nacionalidade próspera e forte por outra empobrecida e fragilizada. Levava-se a diferença de posições ao auge da ameaça, ao dizer-se que o vaso de guerra Enchantress, às ordens do Almirantado britânico, estava fundeado em Vigo, aguardando ordens. Não se poderia utilizar linguagem mais directa, vexatória e brutal. Foi esse desprimor linguístico para com Portugal, foi decerto essa leonina manifestação de sobranceria, que mobilizou quase instantaneamente os estratos populares.
Mas é sabido que o Povo, abandonado ao acaso das suas emoções imediatas, se perde no florilégio verbalista, na grandiloquente tirada patriótica, na movimentação inconsequente, no alarido avulso. O jornalista João Chagas, testemunha presencial deste choque popular provocado pelo Ultimatum, deu testemunho de tal estado de espírito, ao escrever no seu Diário de um condenado político: “O que eu esperava nunca esteve bem definido no meu espírito, mas não era por certo essa ensurdecedora gritaria de rua”.
A frustração impeliu as turbas lisbonenses para deploráveis actos de violência. O jornal Novidades, ligado ao Partido Progressista, procurou justificar a pronta submissão do governo português à vontade de Salisbury , alegando que as nossas autoridades coloniais tinham assinalado movimentações ameaçadoras de vasos de guerra britânicos nas costas de Moçambique, Cabo Verde e Gibraltar. Logo multidões enfurecidas trataram de estilhaçar os vidros desse periódico. Idênticas depredações foram cometidas na residência de Barros Gomes, ministro dos Estrangeiros, e na Legação inglesa. Nesta última, o acinte foi mais longe, pois os populares arrancaram a pedra de armas que adornava a frontaria. Inversamente, era farto o aplauso de saudação ao jornal Gazeta de Portugal, de simpatia regeneradora, e à folha republicana O Século, ambos irmanados na reclamação comum de demissão do governo progressista de José Luciano de Castro. Os súbditos da Rainha Vitória, residentes nas cidades portuguesas mais populosas, passaram a ser rudemente interpelados nas ruas e nem sequer a delicadeza da condição feminina serviu de contenção a impropérios grosseiros. Um professor de dança muito conhecido em Lisboa, Justino Soares, apressou-se a publicar na imprensa uma declaração de indisponibilidade para ensinar os passos da valsa ou de qualquer outro ritmado requebro a toda a lady que se lhe apresentasse! As lojas comerciais da Baixa esboçaram um boicote a produtos ingleses, retirando das suas montras as bebidas espirituosas provenientes de cascos londrinos e até mesmo os chapéus de coco oriundos da brumosa ilha. E o Diário de Notícias sofreu a reprovação dos que se escandalizavam por o verem persistir na publicidade a mercadorias britânicas. Provavelmente para lisonjear a anglofobia das gentes, a imprensa passou a excluir das suas colunas todos os vocábulos ingleses; assim, o Diário Ilustrado rejeitou o título da secção “High-Life”, com que designava os eventos mundanos, passando a mencioná-los sob a denominação de “Sociedade Elegante” ou de “Alta Sociedade”. Foram banidas as palavras meeting e club, para as quais se encontraram as equivalências vocabulares comício e grémio, rescendendo a um patriotismo mais vernáculo.
A própria poesia – ou a contrafacção dela – irá demonstrar a condescendência com que foi tratado este peculiar estado de espírito, singularizado como simbiose de irritabilidade frustrada e de teatralidade protagonizada por maus actores. Nesta linha, Silva Ferraz, um poeta menor do tempo, irá redigir os versos d’A infâmia. Carta a Sua Majestade El-Rei D. Carlos a propósito do conflito anglo-português. Algumas passagens são verdadeiramente pasmosas, por se equilibrarem deficientemente na corda bamba da sensatez e por induzirem mais ao riso do que à indignação. Atente-se neste “mimo”:
Não recueis, Senhor! uma lição severa
Mandai à nossa aliada, essa indomável fera,
Que para nós lançou seus olhos de milhafre,
Tentando espezinhar-nos como ao “boer” e ao cafre:
- Quebremos essa aliança, e contra a represália
Sejam nossas irmãs, a França, a Espanha e a Itália!
Guerra de morte ao infame e às loiras esterlinas,
Às rolhas, Oldton Gin, ao ferro e às margarinas:
Também neste formoso e lúcido torrão
Se fabrica cerveja e há minas de carvão!
E mostremos depois, a esses cruéis patifes,
A falta que lhes faz o Port Wine e os bifes.
O desvalimento e a impotência nacionais irão exprimir-se através do recurso ao grande gesto teatral e à emotividade gratuita, produto de uma psicologia de massas que esbraveja em público para, logo de seguida, se recolher à inércia do espaço doméstico, com o papo cheio de invectivas e as mãos cheias de vazio.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem