O ódio do Junqueiro
Quando o Ultimatum varreu Portugal, em ondas de retórica e de impotência, já Abílio Guerra Junqueiro, transmontano de Freixo de Espada-à-Cinta, era uma notabilidade. Para isso contribuiu a opinião, geralmente adoptada, que o apresentava como um poeta de dimensão excepcional. Em Coimbra, versejara copiosamente n’A Folha, de João Penha; e dera mostras das suas preferências democráticas escrevendo poemetos à radicação da terceira república francesa (A vitória da França. 4 de Setembro de1870) e ao advento da república espanhola de 1873 (À Espanha livre). Pouco depois irá obter um sucesso retumbante com o livro A morte de D. João, obra de sátira ao decadente romantismo carnal de um velho ridículo, falso ícone de conquistas amorosas ultrapassadas.
Junqueiro foi um demolidor, por íntima e ínsita exigência caracterial. Em 1879 fez representar uma peça que redigira com Guilherme de Azevedo e que produziu um escândalo tão sonoro que o poder político se apressou a proibi-la. Tratava-se da Viagem à roda da Parvónia, representada uma só vez em Janeiro de 1879, truculenta sátira às instituições e às figuras gradas do país. Mas como a proibição viera tocada pelos ventos do Partido Regenerador, logo o Partido Progressista veio à liça para acarinhar e conquistar para as suas hostes o insubmisso poeta. Seguir-se-ia, em 1885, o quase inconcebível desafio às crenças católicas tradicionais, através da publicação de um livro herético, vigorosamente denunciador e frontalmente dissidente. Falamos d’A velhice do Padre Eterno. Com ele se procurava esventrar, sem a menor complacência, não só o significado da Divindade bíblica como o suposto préstimo do catolicismo romano. Era uma condenação altissonante da hipocrisia eclesiástica, da cupidez e venalidade do Vaticano e da risível dogmática em que assentava a Igreja de Cristo.
Guerra Junqueiro pertenceu ao grupo gastronómico – e político… - dos “Vencidos da Vida”. Mesmo nele não deixou de revelar a agressividade do seu riso escarninho, sempre pronto a jogar no paradoxo e a retirar provocadores efeitos, por antonomásia. Foi o que aconteceu na oferta de um volume da Velhice do Padre Eterno ao “vencidista” e também sacerdote António Cândido, exemplar que foi entregue com a seguinte dedicatória: “Ao herege António Cândido. O Padre Abílio”! …
O “vencidismo” exprimia a ideia, cara a Oliveira Martins, Carlos Lobo de Ávila, António Cândido, Ficalho, Arnoso e demais amigos de D. Carlos, da necessidade de salvar Portugal através de reforços de autoridade régia e de cesarismos bismarckianos. Mas quando sobreveio o Ultimatum, Guerra Junqueiro, que havia rompido com o Partido Progressista, rompeu também com este grupo, onde estivera em risonho convívio. E descobriu dentro de si um Ódio imenso, condensado, terrível. O alvo passaria a ser D. Carlos, o novo rei, cuja afinidade com esses políticos-gastrónomos era tamanha que ele próprio se proclamava “Vencido suplente”. Doravante, as peças literárias de Junqueiro iriam ser verdadeiros ajustes de contas, dirigidas contra o detestado rei. Assim veio a acontecer com o Finis Patriae, obra que apresentava Portugal como nau sem rumo, entregue aos jogos malabares de trafulhas incapazes. E que dizer desse vaticínio tremendo, dessa desmesura profética que ressaltou do poemeto O Caçador Simão? Simão, um dos apelidos de D. Carlos, era o alienado devoto das artes de Santo Humberto, correndo montes e pisando valados para abater mais uma peça de caça, mesmo quando Portugal mais poderia necessitar dos urgentes cuidados de sobrevivência ministrados pelo seu monarca. O poemeto apareceu no jornal A Província e depois em muitos outros periódicos. Contava o calvário da Pátria, profanada nos seu brios, abandonada à sua sorte, desprezada por aqueles que mais a deveriam acarinhar. Simão, esse, não pensava em mais nada senão em caçar. Daí o refrão que se repetia, obsidiante: «Papagaio real, diz-me, quem passa? / - É el-rei D. Simão que vai à caça» . E como se conclui esta peça terrível? Conclui-se com uma aparentemente ligeira alteração de palavras, as quais convertem o que poderia ser apenas paródico numa exortação à tragédia (uma tragédia que viria deveras a ocorrer, anos mais tarde): «Papagaio real, diz-me, quem passa? / - É alguém, é alguém que foi à caça / Do caçador Simão !... ».
O Ódio de Junqueiro tem de se escrever com maiúscula. É um Ódio de fera, um Ódio de desforra, um Ódio sem indulgência, sem transigência, sem vacilação. Em suma: um Ódio de Ultimatum.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem