Afonso Costa ou a República de um convicto
Afonso Costa foi talvez o estadista mais amado e odiado da história contemporânea portuguesa. O Ultimatum inglês revelou-o em Coimbra como um combatente desassombrado da causa republicana e determinou-lhe o estilo da militância: um estilo cerebral, cáustico, intransigente, demolidor. Atrasou a sua progressão académica por fidelidade a uma greve estudantil e foi declarado pela Faculdade de Direito, por várias vezes, um dos melhores alunos do seu tempo. Só conhecia a radicalidade como método de análise social. Não se lhe pedissem meias-palavras, penumbras lógicas, matizes indecisos. Tudo isto ele repelia, com aborrecimento e impaciência. Não lhe bastava ser um crente, porque exigia de si próprio ser um convicto. E foi-o, mantendo-se na estacada dos mais agrestes combates até à descrença definitiva, não em si, mas no Portugal que enternecidamente serviu. O trabalho de conclusões magnas que apresentou no remate do seu curso jurídico, A Igreja e a Questão Social, incorria na inaudita audácia de contrariar, ponto por ponto, a encíclica De Rerum Novarum, de Leão XIII, apresentando a sociologia eclesiástica nela contida como uma simples habilidade dialéctica, sem alcance e sem visão de futuro. A Universidade de Coimbra não pôde deixar de o fazer lente substituto.
Não seria, contudo, a pedagogia universitária a consagrá-lo. As eleições legislativas de 26 de Novembro de 1899 fizeram-no deputado, mas a monarquia tentou contrariar o veredicto das urnas, sob a alegação de irregularidades formais. O Partido Republicano insistiu com a sua candidatura e ele viu-se confirmado pela vontade do eleitorado portuense em 18 de Fevereiro de 1900. Pouco depois da sua estreia parlamentar iremos vê-lo, no interior de uma Câmara dos Deputados maciçamente monárquica, a pedir a imediata mudança das instituições e dos poderes instalados. O seu combate transbordou também para o interior do próprio Partido Republicano. Afonso Costa sentia-se capaz de ser o estratega, a verdadeira eminência parda do republicanismo portuense. Nem todos se dispunham a reconhecer-lhe tal condição. Daqui resultaram tensões e desentendimentos com algumas figuras gradas da política e da cultura portuenses. José Pereira de Sampaio (Sampaio Bruno), porta-voz do grupo oponente, haveria de o atacar com rijeza. Afonso Costa, bem ao seu jeito, retaliou com o argumento último do desforço físico. Foi sob o breve e nevrótico consulado de João Franco (1906-inícios de 1908) que o seu génio combativo mais brilhou. Enquanto a Câmara Baixa se manteve aberta, os seus discursos atroaram os ares e as consciências, sustentando que a Casa Real, ao recorrer a “adiantamentos” financeiros, à margem da legalidade, se constituíra como ré e culpada de descaminhos pecuniários. Foi expulso, debaixo de armas, perturbando o rendilhado das boas maneiras legislativas. Quando João Franco recorreu à fórmula ditatorial, com a expressa conivência de D. Carlos, Afonso Costa envolveu-se na revolta de 28 de Janeiro de 1908, que se gorou, mas que também espavoriu as hostes monárquicas. Seguiu-se o regicídio, o timorato reinado de D. Manuel II e a proclamação da República. O governo provisório teve-o como Ministro da Justiça. Revelaram-se então, em simultâneo, as duas facetas mais polémicas do seu republicanismo: por um lado, o pendor filosófico do seu programático anticlericalismo e, por outro, o talento sociológico da sua normatividade jurídica. Do primeiro brotou essa controvertida Lei da Separação da Igreja do Estado; do segundo manaram leis reformadoras verdadeiramente decisivas, como as da imprensa, divórcio, inquilinato, família ou registo civil. A obra reformadora da Primeira República identifica-se, em larguíssima medida, com Afonso Costa. Quando se suscitou em Portugal o debate que dividiu os mentores da opinião entre os que se batiam pela entrada de Portugal na Grande Guerra, ao lado da Inglaterra, os que sustentavam o abstencionismo e os que perfilhavam a fórmula liberticida da germanofilia, Afonso Costa fez-se arauto do “guerrismo” pró-britânico, não porque fosse tal saída, no imediato, a mais cauta, mas porque seria, no médio e no longo prazo, a única digna dos nossos brios e interesses. Foi Afonso Costa, apoiado pelo seu Partido Democrático, quem exigiu da colectividade nacional este sacrifício e este tremendo encargo. É de supor que, sem ele ou à margem dele, Portugal se visse amputado dos seus domínios coloniais nos anos do pós-guerra.
O protagonismo interno de Afonso Costa extingue-se com a ditadura de Sidónio Pais, o “Presidente-Rei” (Jesus Pabón). Vê-lo-emos, bem mais tarde, a bater-se pelos interesses da sua pátria nos grandes conclaves internacionais: na Sociedade das Nações, no Tribunal Permanente de Justiça Internacional, na Comissão da Dívida de Guerra. Quando chegou a ditadura militar de 28 de Maio de 1926 e o Estado Novo do salazarismo, tudo foi feito para infamar e diabolizar a sua personalidade ou, após o seu falecimento, a sua memória. E isto acaba por ser compreensível: os regimes de pigmeus jamais suportaram a grandeza do civismo impoluto.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem