Portugal em Guerra e o Ascenso da Contra-revolução
Em Fevereiro de 1916, Portugal logrou finalmente sair da situação de beligerância encoberta em que se encontrara perante o conflito mundial chamado chamado Grande Guerra. Necessitada que estava de navios mercantes, face às baixas infligidas à sua frota pela guerra submarina alemã, a Inglaterra solicitou ao governo português que procedesse à requisição de todos os navios inimigos que se encontrassem em portos portugueses. O governo de Afonso Costa dispôs-se a aceder ao pedido da Inglaterra, pondo, no entanto, a condição de o mesmo ser oficialmente formulado ao abrigo da aliança anglo-portuguesa, no que, os ingleses concordaram, não sem alguma surpresa por parte dos governantes portugueses. A 24 de Fevereiro foi publicado o decreto de confisco dos barcos e, alguns dias depois, a 9 de Março, a Alemanha declarou guerra a Portugal. Por seu turno, a Grã-Bretanha manifestou publicamente a intenção de assumir todas as obrigações da aliança, dando a Portugal todo o auxílio possível ou considerado necessário, quer na Europa, quer em África. Os dados estavam lançados e Portugal adquiria assim, jure et facto, o estatuto de país beligerante.
O Congresso da República, reunido a 10 de Março proclamou o estado de guerra e pronunciou-se pela necessidade da constituição de um ministério mais amplamente representativo da realidade política nacional. Desta posição do Congresso, nasceu a formação do Governo, chamado de União Sagrada (decalque de L’Union Sacrée, francesa). União que, todavia, se restringiu a democráticos e evolucionistas, dado que, apesar dos esforços feitos pelo presidente Bernardino Machado, tanto Brito Camacho como Machado Santos se recusaram a participar em tal projecto. O Partido Socialista Português negou também a sua participação e os monárquicos não foram sequer convidados. Sendo o divisionismo no campo republicano um facto insofismável, esperava-se, no entanto, que em torno de um empreendimento desta dimensão e importância se pudessem estabelecer consensos. Tal não aconteceu e isso não deixaria de ter reflexos negativos.
António José de Almeida foi o nome escolhido para chefiar o novo governo, ficando Afonso Costa com a pasta das Finanças. Sob o impulso forte e empreendedor do Ministro da Guerra, major Norton de Matos, foi realizado, em cerca de três meses, o chamado Milagre de Tancos, ou seja, a constituição do Corpo Expedicionário Português (CEP), composto por trinta mil homens razoavelmente preparados e equipados. Enfrentando dificuldades políticas e económicas de monta e uma tentativa de revolta em Tomar, encabeçada por Machado Santos, o governo conseguiu levar a efeito a participação das tropas portuguesas nas frentes de batalha europeias e ainda aumentar o esforço de guerra nas colónias. O primeiro contingente do CEP largou do Tejo a 30 de Janeiro de 1917, a bordo de três navios britânicos e chegou à Flandres a 8 de Fevereiro. O segundo contingente embarcaria a 23 desse mês de Fevereiro.
Entretanto, intensificavam-se os ataques internos das oposições, com destaque para os monárquicos germanófilos que, com apoio dos alemães, conspiravam contra a República e envenenavam a opinião pública, voltando-a contra os poderes instituídos. Aproveitando o ambiente de descontentamento provocado pela grande escassez de géneros de primeira necessidade, as suas atoardas acabavam, acolá e além, por produzir os efeitos desejados. A isto se somavam as incoerências políticas de um Brito Camacho e os comportamentos inconsequentes de um Machado Santos. Por motivações ideológicas, também os sectores sindicais, dominados pelo anarco-sindicalismo, se pronunciavam contra a política guerrista do Governo da União Sagrada. Por estas razões, foi-se instalando, pouco a pouco, na sociedade portuguesa, um clima de mal-estar que acabou por º texto do chegar ao próprio governo e por afectar negativamente alguns dos seus membros. Apesar da firmeza de propósitos dos principais chefes – António José de Almeida e Afonso Costa – em levar por diante o programa da União Sagrada, o Governo veio a cair, face à defecção de alguns evolucionistas.
Constituiu-se então novo Ministério, presidido por Afonso Costa, o seu terceiro governo constitucional. Eram inúmeras as dificuldades com que a acção governativa se defrontava, podendo afirmar-se que existiam duas frentes: a externa, compreendendo a questão da guerra e todos os problemas dela decorrentes e a interna em que a complicação maior era a das subsistências, aí se filiando um cortejo extenso de males – falta de géneros alimentícios e energéticos, alta de preços, contrabando, açambarcamentos, mercado negro, novo-riquismo. Mas também não faltavam adversidades de outra natureza, tais como a existência de elementos activos no interior das forças armadas a provocar estados latentes de insurreição e minorias politicamente organizadas a desenvolver acções de propaganda anti-governamentais. Assacando todas as culpas ao Governo, visavam contabilizar a seu favor todo o natural descontentamento das populações, face às condições de vida extremamente penosas, impostas pela economia de guerra. As misérias experimentadas pelos soldados na linha da frente e o elevado número de mortos, feridos e estropiados concorriam também para que as famílias portuguesas passassem a odiar uma guerra cuja razão de ser nunca fora, de resto, suficientemente entendida pelo povo, sobretudo o povo da província. Tudo isto constituía um caldeirão de ingredientes perigosos, fervendo num lume brando que a propaganda germanófila e anti-guerrista se esforçava por atear.
Entre Maio e Setembro de 1917, o país viveu um ambiente continuado de greves e tumultos e assaltos a padarias, mercearias e armazéns. A repressão, por parte das polícias, a esses actos de pilhagem, causava, invariavelmente, mortos. Degradava-se a imagem do Governo e a de Afonso Costa e eram constantes os rumores de golpe de estado. O jornal A Montanha, órgão democrático do Porto, abandonava o Partido e tornava-se independente. Em outro importante jornal democrático, O Mundo, um grupo de redactores, com Mayer Garção à frente, retirava-se para fundar A Manhã, diário independente. Nas eleições municipais de 4 de Novembro de 1917, os democráticos conquistaram apenas 92 dos 300 municípios conquistados em 1913. A nação portuguesa afundava-se e com ela o Partido Democrático em cujo interior se começavam a instalar desinteligências graves.
Em Novembro, Afonso Costa ausentou-se para Paris para aí participar numa conferência promovida pelos aliados. Aproveitando a sua ausência, a insurreição militar pôs-se em marcha. À sua frente aparecia uma personagem politicamente desconhecida, de seu nome Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais. Militar de artilharia e lente de matemática, exercera até Março de 1916 as funções de ministro plenipotenciário de Portugal em Berlim. Desde o seu regresso, conspirara activamente contra a União Sagrada e contra a política intervencionista, tentando assumir o papel de chefe e guia de todos os descontentes. No trabalho desenvolvido ao longo de todo esse tempo, logrou obter o apoio de grandes proprietários agrícolas e da alta burguesia que se dispuseram a financiar a causa. O próprio Sidónio Pais, discursando em Évora, referir-se-á a António Miguel Fernandes, lavrador rico de Beja (depois guindado ao cargo de Governador Civil de Lisboa), como «o homem que mais ajudou a revolução». O projecto envolvia unionistas, centristas, machadistas, monárquicos, católicos e, no sector militar, oficiais de baixa patente, cadetes da Escola de Guerra e alguns sargentos que se opunham com mais determinação à participação no front. Os próprios sindicalistas, ideologicamente antiguerristas e cansados que estavam de deterioradas condições de vida e de repressão, concediam a Sidónio senão apoio, pelo menos benefício da dúvida. Assim, todos esses empenhos, conseguiram insurreccionar algumas unidades militares da guarnição de Lisboa – artilharia, cavalaria e infantaria – que conjuntamente com os referidos cadetes e alguns populares (poucos) saíram à rua, ao anoitecer do dia 5 de Dezembro de 1917, e assentaram arraiais no alto do Parque Eduardo VII.
A resposta do governo foi frouxa, própria de um executivo que se encontrava num estado de grande debilidade. No entanto, a luta tornou-se acesa durante o dia 7, com duelos de artilharia e combates no Largo do Rato e na Avenida da Liberdade. Numa atitude timorata que contrastava com a firmeza que anteriormente demonstrara possuir, o Ministro da Guerra, Norton de Matos, apresentou o seu pedido de demissão ao Presidente Bernardino Machado. O desânimo e a desorientação instalados no Governo, estando Afonso Costa ausente, acabaram por oferecer a vitória aos revoltosos. A postura, eternamente conciliadora, de Bernardino Machado levou-o a considerar a possibilidade de fazer um entendimento com os mentores da revolução. Nesse sentido, pediu a comparência junto de si do chefe unionista, Brito Camacho, o qual, pura e simplesmente, ignorou o pedido. Bernardino Machado ostentava assim um desconhecimento ingénuo quanto ao que realmente se estava a passar, não se apercebendo do que representava a revolta e das intenções que a mesma comportava, facto tanto mais indesculpável quanto era verdade que a insurreição havia sido tramada quase às claras. As declarações e proclamações iniciais dos vencedores, feitas a 8 de Dezembro, em nome da Liberdade e da República e defensoras da presença de Portugal na guerra, ao lado dos aliados, não escondiam o cariz germanófilo, conservador e revanchista do movimento. Contavam, no entanto, com o apoio do antiguerrista Brito Camacho e do eterno conspirador, Machado Santos, campeão do ódio a Afonso Costa. E tinham também o assentimento do médico e cientista Egas Moniz que, entretanto, desenvolvia esforços para formar um novo clube político, o Partido Centrista Republicano.
Regressando de Paris, sem ter noção exacta do que se estava passando em Portugal, Afonso Costa foi preso no Porto. Por seu turno, o Presidente da República, Bernardino Machado, instado a renunciar ao cargo, recusou fazê-lo, sendo por isso demitido por decreto e forçado a exilar-se. Após quatro meses de prisão, também Afonso Costa partirá para o exílio em Paris, cidade onde virá a fixar residência permanente. O movimento dezembrista, assim chamado por ocorrer em Dezembro, dará lugar a uma ditadura personificada pela figura de Sidónio Pais, regime que rapidamente desaparecerá após a morte do ditador, na noite de 14 de Dezembro de 1918, data do seu assassinato na Estação do Rossio, em Lisboa.
Publicado por Fernando Fava.