O consulado franquista, que conduziu inevitavelmente ao drama do regicídio, desenvolveu-se em duas fases nitidamente diferenciadas: a fase de observância constitucional, entre Maio de 1906 e o mesmo mês de 1907, e a fase assumidamente ditatorial, que irá culminar com o assassinato de D. Carlos e do príncipe real, em 1 de Fevereiro de 1908. Como chefe de um gabinete heterogéneo, João Franco dependia estritamente da continuidade da coligação liberal, isto é, da boa-vontade de José Luciano de Castro. Se este lhe retirasse o patrocínio, o governo perderia as condições de continuidade, uma vez que era o aval do Partido Progressista que lhe conferia o horizonte de futuro. A verdade é que a confiança progressista acompanhou o primeiro desenvolvimento do franquismo, permitindo uma partilha de ministérios entre os seguidores de José Luciano de Castro e os adeptos de João Franco.
Após uma primeira agitação verbal de simples demagogia, argumentando que o país não poderia continuar a ser “ludibriado” pelo rotativismo das formações históricas, João Franco apresentou ao país um simulacro de arrependimento. Viria a declarar, explicitamente, que o seu passado ditatorial tinha sido um erro e que não tencionava reeditá-lo. O que se lhe impunha doravante era “governar à inglesa”, com a instituição parlamentar a exercer a sua acção fiscalizadora e com o contraditório de argumentos que quadravam a uma situação de pluralismo político. Contudo, sob esta farpela de cristão-novo reconvertido à pressa ao credo constitucionalista, aflorava, a espaços, a carranca franzida do antigo estudante coimbrão que esfolava gatos e espavoria caloiros com o cacete despótico da violência gratuita. E era assim que perante o altear das críticas, oriundas sobretudo das fileiras republicanas, este converso liberalizante de fresca data ia rosnando, num discurso feito no seu Centro Marques Leitão, este mimo “pacifista”: “ Os republicanos estão a pedir peixe-espada (ou seja, uma carga de sabre policial) como pão para a boca! ”. Esta flutuação de disposições e cálculos, entre a cruz da brutalidade e a caldeirinha da contemporização, haveria mais tarde de ser caricaturada nos versos com que Luís Galhardo, na revista Ó da guarda, de 1907, o caracterizava, sublinhando-lhe o provinciano sotaque beirão : “Eu xou liberal, eu xou liberal, // E xou casmurro, // Eu xou liberal, eu xou liberal, // Como um burro !”…
As eleições de 19 de Agosto de 1906 levaram à Câmara dos Deputados quatro representantes do Partido Republicano que viriam a demonstrar uma excepcional envergadura tribunícia. Eram eles Afonso Costa, António José de Almeida, Alexandre Braga e João de Meneses. A oposição, no seu todo, era ainda alentada por trinta regeneradores e três dissidentes alpoinistas. Com uma inépcia política verdadeiramente pasmosa, João Franco introduziu na discussão parlamentar um tema incendiário: o dos “adiantamentos à Casa Real”. Tal matéria, jazendo esquecida nos arquivos das memórias históricas, consistia numa prática usual, desde há muito radicada, de serem pedidos pelo monarca e pelos seus familiares directos, aos diversos Ministros da Fazenda, vários reforços de verba para solver compromissos de natureza vária, para os quais a chamada “lista civil” – ou seja, o montante orçamental previsto para as despesas da realeza – se revelava insuficiente. Confessando que havia contas a liquidar entre a Administração da Casa Real e o Estado, João Franco oferecia às oposições, sobretudo à republicana, a oportunidade de ver questionada não apenas a legalidade de tais empréstimos mas até a honorabilidade de quem os solicitava. Era trazer ao terreiro da publicidade e do debate político a própria dignidade do Trono!
Os deputados republicanos não deixaram fugir tão soberana oportunidade. Dois deles, Afonso Costa e Alexandre Braga, foram expulsos da respectiva Câmara devido à dureza das observações produzidas. O primeiro, comparando o colapso da monarquia francesa, iniciado em 1789, com a vaga de descrédito que agora sentenciava o Trono lusitano, atreveu-se a declarar que “por menos do que fez o Senhor D. Carlos, rolou no cadafalso a cabeça de Luís XVI”. Por seu turno, Alexandre Braga ousou declarar, visando a Casa Real, que havia quem recebesse “adiantamentos por debaixo da mão nesta Falperra de manto e coroa”. O Partido Republicano aproveitou o incidente das expulsões para lançar uma campanha sistemática de solidariedade em relação aos correligionários excluídos, a qual não deixou de ser também uma solene advertência contra as arbitrariedades da monarquia.
João Franco cumpria a sina dos homens coléricos que dão de si uma imagem de força concentrada e de arremetida agressiva. Foi esta aparência que lhe foi proporcionando as simpatias de sectores intelectuais relevantes: Ramalho Ortigão e Eugénio de Castro, entre vários outros, depositaram no franquismo esperanças de resgate que não viriam a confirmar-se. Muito mais certeiro era o cantarolar que se ouvira no Porto, cidade de vigorosa tradição liberal, onde soara, em forma de verso de pé quebrado, a condenação implícita assim formulada: João Franco veio ao Porto // De botinhas amarelas; // Vai-te embora , João Franco, // Senão tu ficas sem elas.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem