Dueto D. Carlos / João Franco (2)
Os ecos da tempestuosa situação política provocada pela ditadura de João Franco repercutiam-se na imprensa estrangeira, por vezes de forma bem pouco lisonjeira para Portugal e para os portugueses. Alguns jornalistas dessa imprensa vieram a Lisboa, entre eles Joseph Galtier do periódico francês Le Temps, que após um encontro com o Chefe de Governo português, conseguiu que o Rei o recebesse na cidadela de Cascais. Na entrevista concedida, D. Carlos fez coro com Franco nas catilinárias proferidas por este contra os políticos, contra os partidos e contra o Parlamento.
Desatinadamente, disse que, contra o que outros já anteriormente lhe tinham pedido, concedera a ditadura a João Franco por ele lhe ter dado «des garanties de caractère». Sendo a expressão um pouco dúbia, mormente na sua tradução para português, o certo é que os políticos dos diversos quadrantes, alguns deles antigos servidores do regime, a entenderam como uma afronta, um insulto intolerável. Pois não seriam eles próprios pessoas de carácter?
Na sequência do incidente, Augusto José da Cunha, par do Reino, antigo ministro da Coroa e ex-preceptor de D. Carlos, veio a público declarar a sua adesão formal ao Partido Republicano. Outras defecções de não menor importância se seguiram. Os dados estavam lançados e de tal forma que já nada podia deter a marcha descendente que, no plano perigosamente inclinado da ditadura e do regime, os seus próprios mentores haviam empreendido. Fortíssima em jornais de grande tiragem como O Século, A Luta ou O Mundo, a propaganda republicana aprofundava a derrocada. Sobre o país pairava, eminente, a ameaça da revolução.
A 28 de Janeiro de 1908, fracassou uma tentativa revolucionária empreendida em Lisboa por republicanos e por dissidentes progressistas. José de Alpoim, chefe do Partido da Dissidência Progressista, conseguiu fugir para Espanha; em Lisboa ficavam presos Afonso Costa, Álvaro Pope, Pinto dos Santos, Egas Moniz e o Visconde da Ribeira Brava. Dias antes tinham sido feitas outras prisões entre as quais as de António José de Almeida, João Chagas e França Borges.
Perante os factos, João Franco, em quem a prudência nunca fora uma virtude, ensaiou mais uma «fuga para a frente», forjando de imediato um decreto que conferia ao governo poderes para desterrar para as colónias todos os que em tribunal fossem declarados culpados de atentar contra a «segurança do Estado, a tranquilidade pública e os interesses gerais da Nação». Pelo mesmo decreto eram retiradas as imunidades parlamentares aos que «contra a segurança do próprio Estado se manifestem ou que como inimigos da sociedade se apresentem». Compreende-se o quanto as intenções de Franco não se ficavam por um simples e imediato alcance da medida, mas, outrossim, visavam, a médio ou longo prazo, o aniquilamento das oposições, mormente a do Partido Republicano. Com efeito, sem as cabeças que Franco se propunha banir para bem longe (dizia-se que para Timor), os partidos ficariam drasticamente mutilados e, estimada ambição do ditador, por vasto tempo incapazes de desenvolverem qualquer acção hostil, afastando-se assim da cena política nacional, o espectro da revolução.
A 31 de Janeiro, em Vila Viçosa, o rei apunha a sua referenda no decreto. Contra tudo e contra todos, abandonando necessárias precauções, D. Carlos decidira ir até ao fim no caminho escolhido, porventura considerando que já não havia espaço nem tempo para recuar. E, valha a verdade, o fim chegou depressa: no dia seguinte, o primeiro de Fevereiro de 1908, junto às arcadas do Terreiro do Paço, o soberano e o seu primogénito, regressados de Vila Viçosa, sucumbiam aos tiros disparados por atiradores que se haviam misturado com a multidão.
Na opinião de muitos portugueses, estes algozes, Alfredo da Costa e Manuel Buiça, eram somente os intérpretes da ira e da justiça populares e, como tal, heróis do povo. Veja-se a propósito o comentário feito por um vulto da literatura, como o foi o poeta Guerra Junqueiro: «Não mataram o rei: suicidou-se […] as balas da morte partiram da alma da nação.»