D. Carlos patrocina a ditadura
O governo que João Franco organizara foi, nele próprio, uma contradição e uma mentira. Patrocinado por José Luciano de Castro, cuja doença e velhice lhe obstava a natural chefia, e levado ao terreno por João Franco, cujo partido por ele inventado era um arremedo de grandeza política, tal governo foi desdizendo tudo o que prometera. Franco declarara ser uma “ignóbil porcaria” a lei eleitoral que o seu antigo chefe regenerador preparara contra si; mas, mal se apanhou no Poder, não tomou a menor iniciativa para a substituir. O mesmo Franco prometera reformas e liberdades, dizendo querer “governar à inglesa”, constitucionalmente, e confessando intuitos de “caçar no mesmo terreno dos republicanos”, impulsionando Portugal para a modernidade e para a tolerância; porém, tornavam-se notórios os seus esgares de impaciência nas casas do Parlamento e fora delas, como se lhe fosse de todo impossível escapar à sua antiga sina de irritável déspota.
Aquele governo era também um enigma perante a opinião pública. Esta interrogava-se sobre se seria o franquismo a tomar conta do Partido Progressista, se seria este a absorver aquele, ou se cada um deles, servida a opípara refeição governativa, seguiria tranquilamente o seu caminho. Era isto que Hintze Ribeiro perguntava, utilizando as seguintes palavras: os dois partidos “ fundem-se e consubstanciam-se ou só se juntam, em termos eventuais, para um momento de acção governativa?”.
A crise, previsível devido aos tumultos que a “questão dos adiantamentos” provocara na Câmara dos Deputados, declarou-se sem disfarce quando os ministros da Justiça, José Novais, e dos Estrangeiros, Luís de Magalhães, apresentaram as suas demissões. Uma só pessoa, em tais circunstâncias, poderia propiciar uma continuidade aceitável de governo. Era necessário que o velho José Luciano de Castro lançasse a João Franco a bóia da salvação. Era forçoso que ele viesse dizer que a concentração liberal estava ali para durar e que o seu Partido Progressista ajudaria novamente o franquismo a aguentar-se no mando. Mas quando João Franco pediu ao patriarca do Palácio dos Navegantes alguns dos nomes mais sonantes para restabelecer o crédito do governo, a resposta que obteve foi um não rotundo, peremptório. João Franco naufragava. Ficava só, irremediavelmente só, nos termos previstos pela Carta Constitucional.
Foi aqui que emergiu um novo comparsa para uma farsa que iria terminar em tragédia. Esse comparsa foi o rei D. Carlos, Vencido suplente e admirador secreto de soluções rijas, musculadas. O monarca iria patrocinar a ditadura de um só homem contra todas as forças políticas organizadas de um Reino. É esta cegueira que torna tristemente espantosa tal decisão. D. Carlos sabia, tão bem ou melhor do que João Franco, que a ditadura deste iria desencadear-se contra a totalidade do pequeno mundo político lusitano: contra os regeneradores, que não perdoavam a cisão; contra os progressistas, que tinham posto fim à concentração liberal ; contra os dissidentes de Alpoim, que abominavam tanto o rei como o valido do rei; contra os republicanos, por motivos óbvios; contra os socialistas e os anarquistas, por razões ainda mais evidentes. Certamente poderia agradar a D. Carlos uma “vida nova”, tal como a previra Oliveira Martins, nos seus papéis de literato, de sociólogo e de economista … todo teórico. O penúltimo dos Braganças iria viabilizar o franquismo em ditadura, escrevendo ao chefe daquela escassa patrulha uma carta pessoal, datada de 9 de Maio, onde podia ler-se: “(…) continuemos serenamente, com calma, mas com firmeza a nossa obra. Neste caminho encontrarás tu e os teus colegas todo o meu apoio o mais rasgado e o mais franco, porque considero que só assim, dadas as circunstâncias em que nos encontramos, poderemos fazer alguma cousa boa e útil para o nosso País”. D. Carlos queria continuar serenamente, quando ia reunir todas as razões para a instabilidade; e falava também na nossa obra, como se tivesse sido acometido de uma amnésia súbita, olvidando que um monarca constitucional reina, mas não governa.
Seguiu-se a tudo isto o decreto de 10 de Maio de 1907, encerrando o parlamento e inaugurando, com toda a explicitude, a ditadura de João Franco, antecâmara de uma tragédia que não demoraria a chegar.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem