Um livro infame: "O Marquês da Bacalhôa"
As qualidades intelectuais e artísticas que não podiam ser negadas a D. Carlos, notável pintor naturalista e estudioso dos recursos oceanográficos da costa portuguesa, faziam contraste com o seu fundo de carácter, hedonista e sobranceiro. O monarca tratava toda a gente por tu, desde os serviçais do Paço aos chefes dos governos. Era dado aos “prazeres da carne”, estando longe de constituir um modelo de marido exemplar. Coleccionava amantes e rumava frequentemente a Paris, para beber champanhe na companhia de coristas complacentes. Constava que nos regressos ao pátrio torrão, ao cruzar a fronteira, proferia desabafos como este: “Cá regresso eu à piolheira”. Um dos inúmeros escândalos de costumes do seu reinado teve-o como protagonista. D. Carlos quis ter por perto uma senhora com quem se relacionara intimamente. Por isso, mandou comprar, através da mediação do juiz António Maria da Veiga, espécie de inquisidor-mor das políticas oposicionistas, dois prédios bem próximo do Paço da Ajuda, mais concretamente na zona de Belém, para que as suas visitas fossem mais cómodas e talvez mais frequentes. Mas o caso transpirou para a opinião pública com grande estrondo. O próprio jornal republicano A Luta lhe fez publicidade, declarando em letra redonda que a compra apenas se destinara a encobrir os amores clandestinos do rei. O caso atingiu tais proporções que João Franco teve de destituir das suas funções o juiz Veiga. Por outro lado, a rainha-mãe, D. Maria Pia, embora bastante popular junto dos mais humildes, dava-se a gastos sumptuários e parecia não ter a mais pequena ideia da situação angustiosa das finanças públicas do Reino. Todos estavam lembrados da avultada quantia de mais de cinquenta contos de réis que D. Maria Pia gastara nas obras do seu guarda-roupa do Palácio da Ajuda. As críticas, por isso, dardejavam com frequência, alvejando a família real e atingindo-a na sua própria dignidade. Sendo caçador inveterado, D. Carlos ausentava-se de Lisboa mais vezes do que o bom senso aconselharia, procurando nas suas coutadas de Vila Viçosa as peças de caça que a sua pontaria ia abatendo.
Não foi surpresa, por isso, que António de Albuquerque, um plumitivo sem grandes escrúpulos e também sem grandes talentos literários, fizesse surgir sob anonimato um romance panfleto infamante para D. Carlos e os seus familiares, intitulado O Marquês da Bacalhôa. O livro apareceu em meados de Janeiro de 1908 e fez imediatamente um sucesso estrondoso. Dado o seu conteúdo escandaloso, foi imediatamente apreendido. Mas isso só lhe aumentou a procura, continuando a circular e a ter potenciais leitores, que o procuravam obter por portas travessas. O tema central, nele desenvolvido, residia numa descrição deplorável da vida do Paço e dos mais directos familiares do rei. Eram todos caracterizados como dissolutos, sensuais e dúplices, faltando a todos os compromissos, mesmo os conjugais. Em suma, o livro era um registo imaginário de cenas de alcova e de episódios deslustrantes, enxovalhando a todos os níveis a realeza e a aristocracia mais próxima da Corte. E como o romance misturava, com malévolo engenho e pretensão de realidade, cenas e episódios verosímeis com alusões e imputações meramente fantasistas, a curiosidade citadina respondeu a tais estímulos com uma excepcional e generalizada curiosidade. A prova do estado comatoso do regime foi, de algum modo, certificada pela fraca reacção a este vergonhoso escrito. Os protestos dos monárquicos não se fizeram ouvir senão muito debilmente. O campo republicano rejubilou discretamente, vendo na desqualificação moral da família real e dos seus áulicos a concretização de um dos objectivos da sua própria propaganda.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem