Machado Santos, o "herói da Rotunda"
A Vitória da Rotunda (2)
Por esta altura, já o movimento revolucionário era abertamente discutido pelos lisboetas, em botequins e nas raras casas comerciais que se atreviam a abrir, com os taipais meio-corridos. O jornal republicano O Mundo declarara o seu aplauso à causa da Rotunda. Lisboa passou a acrescentar mais um brado ao seu rumor habitual. Por ruas escusas ou avenidas mais largas, começaram a ouvir-se os gritos, ainda por então sediciosos, de “Viva a República!”. Nos primeiros alvores do dia 5 de Outubro, um diplomata alemão, Encarregado de Negócios do Kaiser, dirigiu-se ao Quartel-General monárquico e solicitou uma suspensão das hostilidades durante uma hora, para que, segundo a sua proposta, os súbditos germânicos pudessem sair da cidade com toda a segurança. Era um gesto que apenas visava reforçar o prestígio teutónico, atendendo ao facto de serem quase inexistentes as pessoas de tal nacionalidade em efectivo estado de risco. Para que o armistício tivesse viabilidade, era necessário ser também aceite pelo comando republicano. O general Gorjão escreveu uma carta explicativa das intenções do Encarregado, arranjou-lhe uma escolta militar e aconselhou-lhe a que procurasse entender-se também com a parte oponente. E eis que o Encarregado, sob a protecção de uma escolta que ostentava uma bandeira branca, sobe a cavalo a Avenida, em direcção à Rotunda. Seriam oito horas e quinze minutos da manhã. O povo de Lisboa atribuiu imediatamente à bandeira o significado simbólico da rendição. A partir de então, explodiram incontidamente as manifestações populares de júbilo e a onda da “arraia-miúda”, liberta de recentes medos, inunda literalmente o teatro das hostilidades. No Rossio, populares entusiastas desfazem completamente as formações militares e convivem alegremente com as tropas. Quando o Encarregado de Negócios da Alemanha chegou à fala com Machado Santos, já este tinha obrigado a escolta a bandear-se com a parte republicana. Depois de algumas palavras rudes travadas entre os dois, é cometido a António Maria da Silva o encargo de redigir os termos do armistício. Ficou escrito que a suspensão de hostilidades se iniciaria às oito horas e quarenta e cinco e cessaria uma hora depois. Não havendo já escolta, Machado Santos dispõe-se a acompanhar o diplomata alemão ao Quartel-General. Seriam pouco mais do que oito e meia da manhã. Ao descer a Avenida a cavalo, o comandante da Rotunda é ovacionado por populares lisboetas, arrancado da garupa do animal e levado ao colo até ao destino. Chega ao Quartel-General desalinhado, coberto de pó e sem uma dragona, que lhe tinha sido subtraída pelas efusões apoteóticas a que fora sujeito. Assim se apresenta perante um general Gorjão completamente desalentado, por ter reconhecido a balbúrdia indisciplinada e festiva que se instalara no Rossio. Apesar de tudo, ainda encontra força e dignidade para interpelar gravemente Machado Santos, acusando-o de ter violado o armistício. Ao que este, olhando para o relógio, lhe replica que, sendo oito horas e quarenta e quatro minutos, faltava um minuto para o seu início. Depois, declara-lhe que a República havia sido declarada. Antes de se render, Gorjão manifesta as suas apreensões pela segurança do rei e recebe de Machado Santos uma resposta tranquilizadora.
Enquanto decorriam estes decisivos lances, os membros do Directório republicano proclamam a República e formam o governo provisório, presidido por Teófilo Braga, na Câmara Municipal de Lisboa. Eram cerca de nove horas da manhã quando Eusébio Leão, Inocêncio Camacho e José Relvas, cercados por outros republicanos, se dirigem da varanda do município ao povo da capital, apinhado no largo fronteiro. Leram a declaração da abolição da monarquia, o manifesto de proclamação da república e os nomes previstos para o governo provisório. Cessava o tempo dos militares e iniciava-se o tempo dos políticos. Às onze horas da manhã tiveram fim as solenidades no edifício da Câmara. A festa transbordou para a rua, traduzida em “entusiasmo, bandeiras hasteadas, exclamações, palavras, gritos”, no dizer quase fotográfico de Raul Brandão. Não faltou também a nota romântica, no telegrama com que Guerra Junqueiro saudou o governo. Nele se dizia, nomeadamente: “A alma da Pátria desabrocha, vitoriosamente, em flor de luz, em flor de ideal”.
A República estava feita? Estava. Mas hoje sabemos, talvez mais seguramente do que nunca, que ela, na sua dimensão mais exigente e essencial, está sempre por fazer. A sua perenidade reside precisamente nisto.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem