A Vitória da Rotunda (1)
Na madrugada de 4 para 5 de Outubro de 1910, Lisboa dormiu mal. Os canhões da Rotunda troaram toda a noite, cumprindo as ordens de Machado Santos, comissário naval que aí se acantonara para fazer vingar uma revolução republicana. O seu envolvimento revolucionário começara cerca da uma hora da madrugada do dia 4. Nessa altura, sob a sua chefia, uma patrulha sediciosa de militares e civis submetera o Regimento de Infantaria 16, em Campo de Ourique, não sem que se tivesse travado uma rija fuzilaria que ceifou a vida ao coronel Celestino da Costa, comandante desta unidade. O grupo dirigiu-se seguidamente para o Regimento de Artilharia 1, em Campolide, objectivo fundamental para os desígnios republicanos, uma vez que guardava grande quantidade de armas pesadas e munições. O auxílio que a patrulha revolucionária pôde prestar, na unidade de Campolide, ao Capitão Pala e aos seus homens revelou-se precioso. Também este quartel caiu nas mãos dos sublevados, dele saindo três baterias sob o comando do capitão Sá Cardoso e do capitão Pala que teriam as missões de atacar o Paço Real das Necessidades e de forçar à rendição da Guarda Municipal, aquartelada nas alturas do Carmo. Tais resultados não foram alcançados por se ter verificado a falta de apoios complementares inicialmente previstos. Assim, as colunas acabaram por se fundir e, contando novamente com o apoio de Machado Santos, seguiram para a Rotunda do cimo da Avenida. Lá se concentraram por volta das três horas da madrugada e aí resistiram a uma débil tentativa de ataque, desferida pela Guarda Municipal. O balanço que os revolucionários puderam fazer sobre a realização do plano previsto não podia ser mais decepcionante. É certo que se soube que em Alcântara, o Quartel dos Marinheiros passara para as mãos de gente republicana, devido à intrepidez de decisão do primeiro-tenente Ladislau Parreira e dos segundos-tenentes Sousa Dias e Carlos da Maia. Mas também se divulgou que, não tendo sido possível prender o rei nas Necessidades, o aquartelamento sofria agora os ataques das forças monárquicas protectoras do Paço, de localização bem próxima, sobranceira à unidade revoltada. Assim, o Quartel dos Marinheiros ficaria obrigado a uma estratégia meramente defensiva. Nas primeiras horas da concentração na Rotunda, os rebeldes à monarquia também não poderiam saber dos sucessos alcançados pela sua parcialidade nas águas do Tejo. Com efeito, o tenente Mendes Cabeçadas subordinara o cruzador “Adamastor” e um grupo audaz de sargentos e praças tomara conta do cruzador “S. Rafael”, transferindo mais tarde o comando para o tenente Tito de Morais.
Na Rotunda, a manhã veio projectar uma luz fria sobre o ânimo descoroçoado das gentes. Constou que as forças monárquicas se estavam a acantonar no Rossio e que a Guarda Municipal se preparava para carregar, Avenida acima, sobre o reduto insurrecto. A esperança estava na possibilidade de a marinhagem poder tomar o Terreiro do Paço, colocando o inimigo entre dois fogos. Mas mesmo isso aparecia como projecto vago e aleatório. Que fazer, então? O comandante Sá Cardoso reuniu um conselho de oficiais, no qual expôs em palavras cruas a angustiante situação. Com uma excepção, foi decidido aceitar a inevitabilidade dos factos. Muitos militares despiram a farda, envergaram roupas civis e desapareceram na primeira esquina. Porém, Machado Santos não o quis fazer. Ia ficar, contra todos os ventos de descrença e todas as marés de desesperança. A primeira contagem de recursos humanos deixou-o gelado. Estavam com ele apenas nove sargentos, cerca de duzentos militares, uns quantos inexperientes cadetes da Escola do Exército e um magote de civis, na sua maioria desarmados. Do Directório Republicano, repositório de políticos maioritariamente civis, apenas se divisava na Rotunda a presença solidária do Dr. Malva do Vale. Foi aproveitada a boa vontade dos populares para cavar trincheiras e reforçar barricadas. Por volta das onze horas do dia 4, irão ocorrer, em simultaneidade, duas iniciativas de consequências verdadeiramente decisivas. No Tejo, os dois cruzadores “Adamastor” e “S. Rafael”, vão fundear em frente à zona de Alcântara e, cumprindo a ordem de Ladislau Parreira, dão-se ao bombardeio do Paço das Necessidades. A metralha provoca estragos no aposento privado do rei e um dos disparos corta, como que simbolicamente, a adriça do pavilhão real. A criadagem deserta, em completo estado de pavor. Por seu turno, os áulicos próximos de D. Manuel II aconselham-no a retirar para Mafra, onde se lhe irão juntar as rainhas avó (D. Maria Pia) e mãe (D. Amélia). Por vontade do monarca, é transmitida à Escola de Torpedos e Electricidade do Vale do Zebro a ordem de afundamento, por torpedeiros, dos navios revoltosos, a qual fica sem efeito, uma vez que o comandante da Escola se nega a dar-lhe cumprimento. Pela mesma altura, a Rotunda é sujeita a um ataque sob o comando do capitão Paiva Couceiro, o qual coordenou a acção militar da Bateria de Artilharia a Cavalo de Queluz, do Regimento de Infantaria 2 e da unidade de Lanceiros, da Cavalaria 2. Como que miraculosamente, a Rotunda resiste e neutraliza completamente a acção por volta das quatro horas da tarde, obrigando os adversários à retirada.
Este baptismo de fogo da Rotunda teve um notório efeito galvanizador. Pelas oito horas da noite do dia 4, a Rotunda regurgita de gente: são mais populares a chegar e é também o retorno de muitos dos sublevados que haviam despido a farda e que agora novamente a querem envergar. Uma grosseira contagem dá agora conta da existência de quinhentos militares e de mil civis, metade dos quais armados. Por descrença, descoordenação ou tibieza, as forças monárquicas do Rossio não se movem e entram em desmoralização a cada hora que passa. Machado Santos decide então agravar as condições do campo monárquico, pondo a troar ininterruptamente uma boca-de-fogo na dobragem de 4 para 5 de Outubro. Na Avenida, devido a esta flagelação, um prédio arde. Que importa um prédio a arder contra o fogo inextinguível de um Ideal? Pois que arda, pensa Machado Santos. O estampido do fogo dura toda a noite, conforme regista nas suas “Memórias” o escritor Raul Brandão. O Quartel General da monarquia incumbe novamente Paiva Couceiro da missão de ataque à Rotunda, mas este pouco mais adianta para além da colocação de peças de fogo na Praça dos Restauradores e na zona do Torel. Tudo se salda, afinal, por rijos combates de artilharia que, embora inconclusivos para ambos os lados, produzem o efeito antinómico de entusiasmar os da Rotunda e de provocar o desânimo nos defensores do Trono. No raiar da manhã, o fogo republicano é assestado sobre o Quartel do Carmo, provocando no comandante, coronel Malaquias de Lemos, um indisfarçável temor. No Rossio, lavra a mais profunda inquietação entre as chefias monárquicas. O que mais se teme é que os navios surtos no Tejo - agora ainda mais reforçados pela conquista do “D. Carlos”, feita pelo tenente Carlos da Maia - enfiem a metralha pelos eixos da Rua do Ouro e da Rua Augusta e façam depois desembarcar no Terreiro do Paço uma força complementar de neutralização. Fosse por imperativo moral ou por mera covardia, os comandantes dos Regimentos de Infantaria 5 e de Caçadores 5, respectivamente coronel Cristóvão Ribeiro da Fonseca e tenente-coronel Peixoto, fazem constar que, a confirmar-se tal eventualidade, não mandarão abrir fogo sobre os marinheiros. Isto dava razão à análise posteriormente feita por Teixeira de Sousa, chefe do último governo monárquico, que reconheceu que a resistência contra-revolucionária dependeu exclusivamente, nesta última fase do confronto, de forças da Guarda Municipal, aliás dispersas e mal coordenadas.
Publicado por Amedeu Carvalho Homem