D. Manuel II , O Rei Breve (2)
Com a chegada de Março, o ambiente toldar-se-á. Agora, as questões mais vivamente debatidas irão ser de teor económico. A opinião pública havia sido agitada com notícias, vivamente secundadas por órgãos de imprensa de todas as oposições, segundo as quais estariam a fazer-se abonos ilegais e discriminatórios a certos funcionários, políticos e instituições privadas. Importará recordar que as sucessivas administrações monárquicas tinham sido acusadas, num passado recente, de opacidade na distribuição de verbas e de favorecimentos financeiros ilegais a diversas entidades, entre as quais enfileirava a própria família real. Ainda estava bem viva na memória de todos a questão dos “adiantamentos à casa real”, que originara, no decurso do consulado de João Franco, inacreditáveis tumultos e incendiárias batalhas verbais no interior da Câmara dos Deputados. Também nesta estava agora sob o fogo das críticas o ministro Espregueira, cuja actuação era questionada por muitos e para cujos actos se pediam rigorosos e esclarecedores inquéritos. A maioria parlamentar acorreu prontamente em defesa do ministro, opondo-se a quaisquer inquirições ou demandas. Tudo isto envenenará o relacionamento mútuo dos deputados, fazendo do parlamento uma casa de permanentes tumultos e de reiteradas recriminações. A tensão persistiu até aos últimos dias de Março. No mês seguinte, iria fazer-se mais uma experiência governativa, sendo o poder entregue a Sebastião Teles. Não se tratava de uma escolha feliz. Alguns “marechais” monárquicos, como Júlio de Vilhena – eterno candidato à chefia do Partido Regenerador – , argumentavam que a vontade do rei estava aprisionada, encontrando-se completamente dependente do conselho e da vontade de José Luciano de Castro. E a verdade é que este alquebrado chefe do Partido Progressista se alcandorara ao estatuto de uma verdadeira “eminência parda” do regime. Sobrava-lhe em experiência política o que lhe faltava em clareza de métodos de acção. Como a sua saúde era desde há muito periclitante, impedindo-lhe um protagonismo directo e pessoal, o matreiro José Luciano julgava poder influenciar decisivamente os jogos de poder através de interpostos comparsas. A sua influência não fora estranha, no passado, à corrente de acontecimentos que culminaram nos disparos dos regicidas. Fora ele quem entregara o mando governativo a João Franco, chefe de um insignificante Partido Regenerador Liberal, com quem celebrara uma equívoca aliança política, fundamentalmente destinada a afrontar e desconsiderar o rival Hintze Ribeiro, timoneiro do Partido Regenerador. Fora ainda ele quem negara ao franquismo as condições mínimas de sobrevivência no quadro do constitucionalismo vigente, dando por findo esse pacto quando melhor lhe pareceu e obstando a que João Franco pudesse recompor com credibilidade o seu exausto gabinete. Desta maneira, fora a maquinação política de José Luciano de Castro que atirara João Franco para os braços liberticidas de D. Carlos. A ditadura franquista tivera-os a ambos, rei e valido, como progenitores; mas fora indirectamente apadrinhada por um José Luciano incapaz de prever, qual aprendiz de feiticeiro, o potencial nefasto da sua manobra. Mesmo agora, praticamente imobilizado pela doença e senectude, continuava a mobilizar em proveito da “sua gente” o crédito que lhe outorgavam D. Manuel II e a viúva Dona Amélia. Assim, ao seu palácio da rua dos Navegantes, onde vivia, continuavam a acorrer os maiorais do seu partido, prontos a colher da boca daquele ancião, de manta e gato sobre os joelhos, as directrizes a executar no terreno concreto da luta política. Por isso, todos viram na escolha de Sebastião Teles para a chefia de mais um elenco governativo a mão oculta de José Luciano, convicção reforçada pelo facto de se tratar de um seu amigo indefectível.
Por seu turno, o Partido Republicano, escudado sobretudo na sua vereação lisbonense, continuava a difundir os valores que lhe eram próprios. Foi por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa que se realizou na capital, em meados de Abril, um imponente Congresso Municipalista. Às acusações anti-republicanas que sublinhavam o pendor daquele partido para certa versão de jacobinismo intolerante e de maniqueísmo cego, respondia o município de Lisboa com um evento que bem poderia ser apontado como exemplar, quer na sua explícita mensagem patriótica, quer na sua implícita demonstração de convivência plural.
A 23 de Abril, data em que abriu em Setúbal um importante congresso do Partido Republicano, um violento terramoto abalou o país, afectando especialmente a região ribatejana: Benavente, Samora Correia e Salvaterra de Magos foram lugares especialmente sacrificados, ficando arrasadas sem remédio numerosas edificações. E logo o radicalismo católico mais empedernido veio à liça, para sustentar que entre a convocação da assembleia republicana e a catástrofe natural que derrocara grande parte do Ribatejo subsistia o nexo de uma punição divina, o laço de uma vingança transcendente … Não poderemos saber, pelo menos por enquanto, se Jesus se preocupava assim tanto com a cartilha e com a cartada jacobina do republicanismo português. O que não poderemos negar é a importância das resoluções saídas do Congresso de Setúbal. Chegara a hora de um render da guarda. Os que, como Bernardino Machado, persistiam em considerar vantajosa a adopção de métodos graduais e de meios pedagógicos e eleitoralistas viram-se claramente ultrapassados pelos que defendiam a utilização imediata de dinâmicas revolucionárias. A revolução não era para ser teorizada, discutida e escalpelizada – era para ser feita, no mais curto prazo. É este o significado da eleição de um novo directório sem Bernardino, mas com José Relvas, Basílio Teles, Eusébio Leão, Cupertino Ribeiro e Teófilo Braga. Com excepção deste último, homem de gabinete, estudioso todo recolhido aos labores da sua produção bibliográfica, os demais rendiam culto à acção, ao envolvimento directo, à intrepidez requerida pelos momentos decisivos. O evolver do tempo afinara o tripé revolucionário com que se contava para arrebatar o poder das mãos da dinastia de Bragança: Sebastião de Magalhães Lima garantia a fidelidade maçónica e a retaguarda ideologicamente mais consistente; Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva ofereciam a operacionalidade das forças carbonárias, tanto mais temíveis quanto instruídas no culto do messianismo republicano e na disciplina de um verdadeiro exército paralelo e secretíssimo; finalmente, o directório recém-eleito recebia o aval dos que já não toleravam novas dilações.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem