D. Manuel II , o Rei Breve (1)
Um rei imberbe, vacilante e tutelado por sua mãe, a rainha-viúva; quatro gabinetes governamentais – os de Campos Henriques (vindo do ano anterior), Sebastião Teles, Venceslau de Lima e Veiga Beirão – que se sucedem de modo pouco pacífico, gerando nos próprios arraiais da monarquia uma tempestade de recriminações, ressentimentos e amarguras; uma oposição republicana que se prepara para todas as eventualidades, pronta a aproveitar as oportunidades que vierem a suscitar-se, de modo espontâneo ou preparado, para desencadear contestações e paradas públicas de força; a Autarquia lisboeta com a presidência entregue, desde Novembro do ano anterior, a Anselmo Braamcamp Freire, um antigo servidor do Paço, que a desilusão atirara para os braços do republicanismo; uma sociedade corroída por suspeições de honorabilidade em relação à gestão das finanças públicas e ao escrúpulo do seu pessoal político; um sector religioso, talvez minoritário mas muito activo, defensor de um catolicismo afectado por princípios radicalmente conservadores e por ânsias de intervencionismo bem distantes do simples “serviço das almas” ; um quotidiano só aparentemente tranquilo, mas na realidade desconfiado da “acalmação” que lhe fora prometida após o rei D. Carlos e o príncipe-herdeiro terem sido assassinados, no pretérito primeiro de Fevereiro do ano de 1908 – eis uma sucinta súmula das notas caracterizadoras do ano de 1909.
Passemos ao detalhe.
Debruçando-se sobre a figura de D. Manuel II nas suas Cartas Políticas, João Chagas declarou, com manifesta crueza, que o monarca o tinha sido quando já não era preciso. Com efeito, o regicídio escrevera o epitáfio da monarquia em Portugal. O que sobejava era uma Corte em estado de descrença, onde apenas a voz do Conde de Arnoso – secundada, no exterior, pela do plebeu Ramalho Ortigão – se elevou para exigir que as responsabilidades homicidas do drama do Terreiro do Paço não ficassem impunes. Porém, é de presumir que o novo rei tivesse sido aconselhado a moderar o seu envolvimento nesta matéria, deixando para o inquérito judicial a imputação definitiva das culpas. D. Manuel II estava manifestamente impreparado para as responsabilidades da alta função em que se viu investido. Não fora educado para tal, e o seu próprio feitio, reservado e fugidio, contrastava em tudo com o mundanismo loquaz e com a fortaleza de convicções de que o seu pai dera provas. Por isso, não surpreende que se tenha entregue à vigilante tutela que lhe foi oferecida por sua mãe, a rainha Dona Amélia. O drama familiar recentemente vivido concorrera, quanto a esta, para fazer compensar a recente viuvez com o enfeudamento recorrente à vivência religiosa. Dona Amélia rodeou-se de directores espirituais jesuítas, dominicanos e lazaristas, tornando também o seu filho excessivamente permeável a tipos de mentalidade em que preponderava a devoção beata. Quando os primeiros revoltosos puderam penetrar nos aposentos privados do rei deposto, após o triunfo da revolução de 5 de Outubro de 1910, foram aí encontrar uma decoração de sacristia, onde abundavam as imagens sacras, as estampas pias, os oratórios, os terços, etc. As restantes individualidades que também o aconselhavam, como José Luciano de Castro, Venceslau de Lima ou o Marquês de Soveral, não souberam ou não quiseram antepor os mais determinantes interesses nacionais às vantagens de casta, de grupo ou de partido.
Logo em Janeiro de 1909, o jornal O Mundo, de marcada orientação republicana, divulgava uma entrevista, concedida por Bernardino Machado (outro trânsfuga das fileiras monárquicas …), onde esta declarava que os erros passados e actuais da monarquia tornavam inevitável a eclosão de manifestações revolucionárias em Portugal. O que tornava tal depoimento especialmente significativo era o facto de Bernardino Machado, professor da Universidade de Coimbra, ser conhecido como um dos mais contemporizadores militantes republicanos. Ele não secundara, num passado não muito distante, a estratégia de ruptura e de imediata confrontação que, após o Ultimato inglês de 1890, fora insistentemente preconizada, nomeadamente, por João Chagas, Alves da Veiga, Felizardo de Lima ou Basílio Teles. Durante anos, o seu discurso irritara visivelmente muitos dos seus correligionários, ao propugnar uma lenta evolução de mentalidades, resultante de uma pedagogia pacífica, persuasiva e demonstrativa da superioridade da república sobre a monarquia. Bernardino Machado não poderia ignorar os avanços que a organização revolucionária fizera desde os tempos rigorosos da ditadura de João Franco. Não lhe eram desconhecidos, sobretudo, os progressos da Carbonária, que se vinha singularizando como o verdadeiro braço armado de uma futura revolução republicana. O lente coimbrão não lhe conhecia detalhadamente todos os meandros. Aliás, nem sequer os bons primos das choças carbonárias entravam na posse de conhecimentos relativos a toda a estrutura organizativa. Só os directores da Alta Venda, como Machado Santos, António Maria da Silva e Luz Almeida, dominavam os segredos desta força armada, deste exército de sombras, que cooptava os seus futuros combatentes com a maior reserva, os vinculava a juramentos iniciáticos e os recrutava sobretudo junto das mais baixas patentes militares. Não será aventuroso sustentar que a entrevista de Bernardino Machado ao jornal O Mundo simbolizava o irreversível reconhecimento do futuro papel das armas, mais do que do raciocínio pedagógico, na mudança iminente das instituições e dos poderes.
Os próprios círculos oficiais não ignoravam totalmente estes aliciamentos, pressentindo que a revolução rondava por perto. Em Lisboa, corria à boca pequena que a propaganda republicana derramava a sua sedução pelo conjunto das forças armadas monárquicas, embora se dissesse que a marinha era deveras permeável ao fascínio do “barrete frígio”. À cautela, António Cabral, ministro da Marinha e Ultramar do gabinete Campos Henriques, que então vigorava, ordenou em Fevereiro à tripulação do cruzador D. Carlos que seguisse para Port-Said, não fosse o diabo tecê-las …
Apesar disto, o mês de Fevereiro de 1909 não se apresentou como especialmente nefasto para as esperanças da monarquia constitucional, caso tal juízo abonatório seja feito apenas a partir da retumbância de certas solenidades exteriores. Foi no decurso deste mês que, irmanados por ideais comuns e por similares imperativos de sobrevivência, D. Manuel II de Portugal e Afonso XIII de Espanha conferenciaram demoradamente em Vila Viçosa. Por outro lado, teria sido com júbilo que se divulgou, na Corte, a notícia de que o ramo miguelista renunciava à sua pretensão de reivindicar a coroa portuguesa. A sucessão de D. Pedro IV passava a deter, de acordo com tal renúncia, o exclusivo da legitimidade dinástica. Foi também por então que se inaugurou em Lisboa o monumento ao marechal Saldanha, esse irrequieto enfant terrible, agora perenizado na estatuária, mas que tantos amargos de boca causara a Dona Maria II e a D. Pedro V.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem