(Na imagem, a carruagem do regicídio)
O Regicídio: Um enigma?
Lisboa foi uma cidade praticamente abúlica e perplexa após o regicídio. Muitos repetiam, sem mais comentários, como se estivessem a fazer estéreis esforços de compreensão, estas palavras tremendas : “mataram o rei; e também o príncipe real”. Os dias seguintes permitiram vislumbrar as mais desencontradas opiniões. Os velhos monárquicos da tradição rotativa pareciam querer distribuir simetricamente, pelo Partido Republicano e pelos dissidentes de José de Alpoim, as responsabilidades maiores da matança. Os republicanos imputavam à ditadura de João Franco a autoria moral do atentado. As hostes franquistas não se atreviam a apontar o dedo acusatório a formações partidárias concretas e preferiam falar numa acção criminosa perpetrada por “um bando de exaltados anarquistas”, como se escrevia no “Jornal da Noite”, órgão franquista. A opinião pública mais vulgar difundia boatos atrás de boatos, que se revelavam completamente infundados, quando analisados por autoridades policiais ou judiciárias.
Vejamos mais de perto as motivações de alguns dos comparsas coevos. Os progressistas de José Luciano de Castro, certamente chocados com a brutalidade dos acontecimentos, não deixavam de fazer coro com os republicanos, quando estes apresentavam João Franco como o “deus ex machina” da trama fatal. Com efeito, a ditadura fora a mordaça, a força arbitrária, o favorecimento descarado dos amigos de Franco e a perseguição implacável movida aos seus inimigos. Portugal convertera-se num reino em “estado de sítio”, entregue aos caprichos do mais escancarado despotismo. Os estudantes de Coimbra faziam greve? Encerrava-se a Universidade. Certas vereações autárquicas opunham resistência, invocando a legalidade? Substituíam-se os resistentes por vereadores afectos ao franquismo. Havia jornais recalcitrantes? Opunha-se-lhes a mordaça de uma draconiana lei de imprensa. Os partidos da oposição moviam-se? Procurava-se a sua paralisação e apodavam-se os mesmos de anti-patrióticos. A revolução queria estalar, como em 28 de Janeiro de 1908? Apresentava-se à referenda régia, concedida a 31, um “decreto de desterro” que prometia a expatriação para colónias distantes de todos os que tivessem a veleidade querer derrubar pela força o puro arbítrio instalado.
Mas a vantagem das forças monárquicas também se identificava com uma suposta cumplicidade do Partido Republicano nos fúnebres factos de 1 de Fevereiro. Tudo foi feito para que esta cumplicidade se comprovasse. Sem resultados verosímeis, contudo. Na Câmara Baixa, ficaram famosos os discursos de António José de Almeida, proclamando, a um tempo, o completo alheamento do Directório Republicano quanto a um presumido envolvimento e, por outro lado, algum espírito de compreensão para com os regicidas, apresentados como os meros executantes de uma “descarga fatal e irreprimível do espírito público”. Nas mesmas águas navegava João Chagas, ao referir o regicídio como “uma tremenda explosão de cólera popular”. A reacção pública não os desmentia. As exéquias do monarca e do seu filho mais velho foram solenes, mas frias. Pelo contrário, as campas dos regicidas foram alvo de um verdadeiro culto e apresentaram-se, durante muitos dias, juncadas de flores, levadas ao cemitério por mãos anónimas.
Após a entronização de D. Manuel II, o processo judicial, tendente a apurar responsabilidades e conluios, entrou numa fase de modorra. Estranha e inexplicavelmente, acabaria por levar sumiço. Que espúrias transacções não estariam aí consignadas? É de calcular que o conteúdo do processo fosse apregoado aos quatro ventos, se dele resultasse a evidência de maquinações republicanas. Mas sabe-se, pelo contrário, que Teixeira de Sousa, íntimo de Alpoim, opinou pela subtracção do documento à divulgação pública, declarando enfaticamente : “Isto não pode aparecer em público, porque é a vergonha dos dissidentes”.Eram tamanhos os indícios do seu comprometimento no regicídio que os amigos de Alpoim passaram a ser designados por “buissidentes”. A carabina disparada pelo Buiça fora adquirida num armeiro, para ser utilizada na revolta de 28 de Janeiro, por um deputado da Dissidência. Como teria transitado ela para as mãos do regicida? Quem lha teria entregue? Outros factos, talvez menos credíveis, poderão arrolar-se. Sabia-se que fora sobretudo o Visconde da Ribeira Brava, dissidente, a superintender na compra das armas que não chegaram a ser disparadas em 28 de Janeiro. Também se disse que dois criados, que tinham ajudado Alpoim a fugir para Espanha, haviam declarado, no dia do atentado, no interior de uma taberna do lugar fronteiriço de Pinzio: “A esta hora já não há rei em Portugal, porque deve estar morto”. Mas há um testemunho esmagador e insuspeito, vindo de quem vem. Contou-o à imprensa espanhola uma das glórias da cultura do país vizinho, Miguel de Unamuno. Passeava ele no fim da tarde do dia 1 de Fevereiro, acompanhado por Alpoim, na belíssima Plaza Mayor de Salamanca. Subitamente, um súbdito português dirige-se ao chefe dissidente, interpela-o, e ouve-o proferir estas palavras terríveis: “Olhe que já morreu o canalha”. Unamuno também as ouviu, confiando-as depois ao periódico “Liberal”, do seu país. Quem era “o canalha”? E como sabia Alpoim que “o canalha” já morrera? É isto prova subalterna e quebradiça? Não nos atrevemos a dizer tal, embora José de Alpoim viesse a manter, em pleno reinado de D. Manuel II, relações de cordialidade com o filho e sucessor de D. Carlos e com a rainha-mãe, D. Amélia.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem