As “Conferências Democráticas do Casino Lisbonense”
(Na imagem - O Casino Lisbonense, ao Largo da Abegoaria, no tempo das Conferências Democráticas)
A modernização capitalista de Portugal, levada a cabo a partir de 1851 pelos sucessivos governos regeneradores e impulsionada especialmente por Fontes Pereira de Melo, revelou-se muito penalizadora para as camadas sociais menos abastadas. Fontes crivou de impostos os contribuintes, não tendo feito a menor discriminação entre os que podiam pagar e os que, por manifesta fragilidade económica, se debatiam em agonias de sobrevivência. Os assalariados e a “burguesia magra” sofreram com estoicismo, durante cerca de quinze anos, esta situação. Mas a revolução espanhola de 1868 e a Comuna de Paris de 1871 vieram agitar as consciências dos mais informados, incentivando sonhos e acendendo esperanças em torno de novos ideais de reorganização social e de mudança política. Os vocábulos “república”, “democracia” e “socialismo” tornaram-se comuns, não tanto para os mais ignorantes e sofredores, mas para os mais doutos ou estudiosos.
O drama da Comuna de Paris foi seguido em Lisboa por Antero de Quental e em Coimbra por Teófilo Braga. Antero acabara já o seu curso de Direito em 1864 e frequentava agora em Lisboa uma tertúlia de amigos, a que tinham dado o nome de Cenáculo, e que funcionava informalmente num quarto do Bairro Alto, arrendado por Jaime Batalha Reis. Teófilo Braga, por seu turno, apesar de também já formado e doutorado, estava ainda por Coimbra e viria a sofrer, nesse preciso ano de 1871, o desgosto de lhe haverem defraudado a promessa de o proverem lente de Direito da mondeguina Universidade. Mas voltemos ao Cenáculo da capital do Reino. Por lá apareciam também três personalidades muito singulares. Uma delas era longilínea, frágil, supersticiosa, atenta às novidades literárias de França e dava pelo nome de Eça de Queirós. A outra era hercúlea, desempenada, de gesto largo e passada firme e assinava-se Ramalho Ortigão. Uma terceira revelava-se retraída, observadora e circunspecta, trajando sempre de negro e chamando as pessoas de parte, para lhes assegurar que, segundo os seus informadores, estava em vias de estalar na Europa uma vingadora e justiceira revolução. José Fontana, caixeiro da livraria Bertrand, reagia assim à revoada de observações que aqueles senhores, mais letrados, iam fazendo. Ferviam as discussões acerca dos últimos acontecimentos de Paris e trocavam-se sarcasmos. A vozearia durava até às tantas e a vizinhança, espavorida pela insónia forçada, reclamava sem grande proveito.
Foi no seio deste memorável Cenáculo que chispou a ideia de virem a organizar-se no Casino, ao Largo da Abegoaria, umas Conferências Democráticas. As grandes questões, aquelas que verdadeiramente importavam ao futuro da Humanidade, iriam ser aí debatidas “com radicalismo”, como explicava Antero em carta expedida para o seu conterrâneo Teófilo Braga, convidando-o a ser também orador. Ramalho Ortigão, de costela mais conservadora e céptica, decidiu ficar de fora. Em 18 de Maio de 1871, o jornal A Revolução de Setembro publicava o manifesto anunciador das Conferências. Era ele assinado por alguns dos frequentadores do Cenáculo e por outros menos assíduos, elencando os nomes de Antero de Quental, Jaime Batalha Reis, Eça de Queirós, Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Germano Vieira Meireles, Augusto Seromenho, Manuel de Arriaga, Augusto Fuschini, Oliveira Martins, Guilherme de Azevedo e Salomão Saragga. Neste documento se declarava que as Conferências iriam preocupar-se, sobretudo, “com a transformação social, moral e política dos povos”, agitando na opinião pública “as grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas” e sendo também estudadas “as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”. O vocábulo “transformação”, repetidamente utilizado, ressalta do documento, dando a medida desta insurreição intelectual em marcha.
Antero de Quental apresentou a iniciativa e proferiu a primeira conferência, que se debruçou sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares. Na sua opinião, o atraso da Península tornava-se explicável pela acção nefasta nela desempenhada pela monarquia absoluta e pela Inquisição católica, não deixando igualmente de enfatizar o irrealismo da aventura marítima dos Descobrimentos. Augusto Seromenho falou sobre a literatura portuguesa e lamentou o carácter formalista e artificial de muitos dos coevos escritores. Seguiu-se-lhe Eça de Queirós, que dissertou sobre o Realismo como Nova Expressão da Arte, destroçando a estética do Ultra-Romantismo reinante, que se apresentava sem um pingo de autenticidade. Adolfo Coelho, chegada a sua vez, pronunciou-se sobre A Questão do Ensino, demolindo sem piedade o obsoleto edifício do sistema escolar então vigente. Fizera-se, até este momento, o requisitório da monarquia tradicional e constitucional, da Igreja católica ultramontana, da literatura sem verdade artística e sem intenção social, do ensino ultrapassado, caduco e falho de actualização. Muitos motivos para a Monarquia reinante se preocupar? Sem dúvida. Por isso, ela não iria permanecer passiva ante o anúncio da próxima conferência de Salomão Saragga – um judeu… – a qual versaria sobre Os Historiadores Críticos de Jesus. O gabinete de António José de Ávila apressou-se a dissolver e ilegalizar as Conferências, brandindo o argumento da impiedade, da salvaguarda dos bons costumes e da necessidade de manutenção da tranquilidade colectiva.
A República acabava de dar um passo mais.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem