Mudar Portugal, cerne do programa republicano
Como os campos portugueses podiam ser talhados, qual carne morta, pelos “notáveis” da região, sobravam as cidades como focos potenciais de rebelião. Era nelas que se aglomeravam os pequenos e médios comerciantes por conta própria, os funcionários públicos de carreira, os possuidores de fabriquetas semi-improvisadas, os protagonistas de profissões liberais (advogados, médicos, professores-leccionistas, profissionais de tecnologias rudimentares, etc). Ao contrário de todo o resto do país, estes agentes sociais sabiam que em 1848 houvera em França uma revolução, fundadora de uma República que instituíra o sufrágio universal; comentavam o advento ao Poder, nessa mesma França da Segunda República, de representantes socialistas, para assombro do mundo e pavor de camadas burguesas endinheiradas. Também nesses círculos se argumentava sobre as vantagens e perigos eventuais do programa descentralizador da Comuna de Paris, bem como sobre o ideário do republicanismo espanhol e sobre as teorias sociais, radicalmente inovadoras, de Proudhon, Saint-Simon, Auguste Comte, Spencer e de tantos outros.
O movimento republicano português nasceu do funcionamento informal de tertúlias citadinas, reflexivas, dialogantes e agregadoras de gente com algumas letras. Era gente identificada com certa burguesia economicamente modesta, embora auto-suficiente. Esses círculos foram os primeiros a reflectir sobre a profunda decadência do país e sobre a enormidade da distância que separava a realidade portuguesa daquela que era vivida para além dos Pirenéus. Portugal arrastava o peso de uma população ignorante e miserável, facilmente manipulável pelos detentores do mando. Era um país vergado ao atavismo de uma economia quase exclusivamente agrária, com um comércio pouco desenvolvido e com uma indústria anémica, concentrada em insignificantes manchas na cintura de Lisboa e Porto. As vias-férreas tinham chegado com um atraso de cerca de sessenta anos; as estradas dignas desse nome quase não existiam, pois preponderavam as veredas escabrosas e os trilhos entre pinhais, sempre sujeitos ao iminente perigo dos vagabundos e salteadores de estrada. Uma viagem entre Lisboa e o Porto, feita de diligência, obrigava frequentemente os transportados, moídos da estafa, a pernoitar numa qualquer malaposta, a meio do percurso. A fome camponesa era uma insofismável realidade. A abastança apenas privilegiava minorias insignificantes, ainda que poderosas do ponto de vista da afirmação social. E os poucos grandes burgueses que tinham sido promovidos à dignidade da nobilitação, através da compra, ao desbarato, de bens nacionais, preferiam especular na Bolsa ou comprar títulos de dívida pública a investir em empresas e negócios de risco.
É necessário que isto se compreenda para que nos apercebamos da verdade de uma situação que esses primeiros republicanos portugueses desejaram mudar radicalmente: mudar, sim, para benefício da maioria dos portugueses e de Portugal.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem