O barril de pólvora da bacia do Congo
A partilha da África por parte das potências coloniais europeias foi um dos episódios mais hipócritas alguma vez acontecidos na cena política mundial. A Europa arrogava-se o exclusivo daquilo que designava por “Civilização”, entendendo por esta palavra o todo compósito da sua religião, cultura, hábitos, tipos de sociabilidade e tradições. Daqui decorria que a peculiaridade dos gentios autóctones, em todas as suas dimensões e formas de expressão, era interpretada como sinal de inferioridade e de primitivismo selvagem. E era em relação a este estigma de subalternização que se arvorava a legitimidade de uma presença europeia omnímoda. Por maiores que fossem ou viessem a ser as crueldades, os excessos, as formas escancaradas da mais desenfreada exploração, incidindo sobre o património natural ou sobre a mobilização compulsiva de mão-de-obra – tantas vezes na sua modalidade extrema de escravatura – a Europa declarava invariavelmente, através dos seus políticos, que se encontrava em África numa superior “missão civilizacional”!
O caso da Bélgica foi, a esta luz, verdadeiramente emblemático. Em 1876, Leopoldo II reuniu em Bruxelas um Congresso Geográfico Internacional que se propunha debater os momentosos problemas do esclavagismo, do abolicionismo e do desenvolvimento das colónias em todas as suas vertentes, mesmo as mais decantadamente éticas. A partir das mimosas preocupações enunciadas pelos congressistas, assistiu-se ao nascimento, nos anos seguintes, de um conjunto de Associações Internacionais e de Comissões de Estudo que foram deixando esbater as originárias intenções de cooperação, multilateralidade e elevação civilizacional para tudo acabar por se reduzir a uma artificiosa operação de anexionismo colonial. Foi em 1883 que Leopoldo II e Stanley criaram a Associação Internacional do Congo, para a qual reclamaram personalidade jurídica internacional e que iria dedicar-se à tarefa de erigir um futuro estado “autónomo” na bacia do Congo. Era a semente do futuro Congo Belga e a alvorada de um dos mais sombrios episódios de desaforada e inaudita instrumentalização de nativos.
Portugal invocava direitos sobre alguns territórios dessa zona. A estratégia lusitana consistia em definir um eixo de expansão a partir do Ambriz, ocupado em 1855, tendo em vista o ulterior avassalamento de Noki, Cabinda e Molembo. Tal projecto não era apenas contestado pela Bélgica; também a Grã-Bretanha, através da diplomacia de Palmerston, movera pressões tendentes a reduzir consideravelmente as ambições portuguesas. E elas só não foram mais longe porque a rainha Vitória temia as retaliações que poderiam ser suscitadas pela França, que se instalara ao norte do Zaire, e pela Alemanha, que pensava seriamente em consolidar a sua presença a sul de Angola (futuro Sudoeste Africano Alemão) e a norte de Moçambique (futura África Oriental Alemã).
Neste xadrez de interesses, sempre velado pela dialéctica perversa de promover o indigenato à “Civilização”, movimentava-se febrilmente um vasto grupo de comanditários e agentes internacionais, a soldo das potências interessadas. Alguns traziam roupetas de missionários, outros botas ferradas de caminheiros, ainda outros lupas e binóculos de botânicos e zoólogos, sendo certo que todos se encontravam mais ou menos comissionados pelos governos europeus correspondentes. A missão de quase todos eles consistia em aliciar os sobas e os chefes locais para a proclamada vantagem de celebrar acordos preferenciais de protectorado com esta ou aquela potência, ao mesmo tempo que se desqualificavam por todos os meios quaisquer outras alianças anteriormente firmadas, caso existissem.
Portugal apercebeu-se que os seus direitos na bacia do Zaire não deixariam de ser questionados e pretendeu alcançar, pelo menos, o consenso britânico. Por isso firmou com Londres, em 26 de Fevereiro de 1884, o chamado tratado do Zaire. As negociações tinham sido iniciadas por António de Serpa e concluídas por Barbosa du Bocage. Portugal comprometia-se a abrir à navegação o curso português dos rios Zaire e Zambeze, reconhecendo como válidos todos os tratados que os agentes britânicos haviam arrancado aos sobas; todavia, eram-lhe reconhecidos importantes direitos ao norte do Ambriz e também homologados os seus limites fronteiriços na região congolesa.
As reacções, internas e internacionais, não se fizeram esperar. A opinião republicana logo sustentou que as cláusulas do tratado reproduziam o mesmo espírito de cedência e o mesmo reverencial temor que já maculara o tratado de Lourenço Marques. E também internacionalmente se fizeram ouvir vozes de protesto, vindas da Bélgica, França e Alemanha. Não se divisavam processos de regulação e de pacificação, no plano do direito internacional, que aplacassem iras, cobiças e ardentes brios nacionalistas dos governos europeus com “vocação colonialista”. Tudo isto se abonava, bem entendido, com o argumento dos “superiores interesses de África e das suas gentes” …