O tricentenário de Camões
Algumas determinações vexatórias do Tratado de Lourenço Marques suscitaram junto do público uma reacção de grande desagrado. Temia-se pelo esfacelamento do império colonial português, às mãos gananciosas e implacáveis da Grã-Bretanha. Era necessário que alguma coisa de poderoso e de notável pudesse ocorrer para que o sentimento de desânimo, que lavrava entre nós, pudesse ser substituído por uma mais esperançosa crença no futuro da Pátria.
O Visconde de Juromenha, investigador laborioso e atento, descobrira num velho documento, compulsado na Torre do Tombo, que o Grão-Poeta Camões falecera em 10 de Junho de 1580. Assim sendo, a data de 10 de Junho de 1880 coincidia com o tricentenário da morte do eterno autor d’Os Lusíadas. Era tempo de evocar a memória do vate, atando à sombra da sua portentosa figura, num só feixe de crença e de esperança, os brios do nosso Povo. Impunha-se que o porte altivo de Camões convertesse o abatimento em entusiasmo, a descrença em força de afirmação, a negatividade descoroçoada em projecto galvanizador de futuro.
No fim da primeira semana de Janeiro de 1880, Teófilo Braga, prestigiado professor do Curso Superior de Letras e reputado teórico do republicanismo, fez-se paladino da ideia do Tricentenário, escrevendo no Comércio de Portugal, de Sebastião de Magalhães Lima, um primeiro conjunto de três artigos, nos quais a ideia era ardentemente propugnada. Foi como se um rastilho tivesse pegado lume. Logo vieram à ribalta pública uma mão cheia de estudantes, publicistas, jornalistas, figuras institucionais e simples anónimos, afirmando, todos à uma, a sua solidariedade para com o desígnio proposto. Assim, fácil foi organizar, sob os auspícios de Luciano Cordeiro e da Sociedade de Geografia, uma comissão executiva de jornalistas e de escritores, aos quais foi cometido o encargo de planear as celebrações. Essa comissão congregava o melhor que Lisboa podia apresentar nos planos do saber e do desinteressado amor ao património lusitano. A presidência honorária foi entregue a António Rodrigues Sampaio, decano dos jornalistas portugueses. Mas lá se identificavam igualmente os nomes de Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis, Manuel Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Luciano Cordeiro, do Visconde de Juromenha e ainda de Sebastião de Magalhães Lima, Teófilo Braga e Rodrigues da Costa. Os estudantes logo quiseram juntar a sua própria estrutura organizativa a este considerável escol da intelectualidade do tempo. Mas os grupos afectos à governação e à administração da monarquia não se revelavam tão eufóricos. É que a figura de Teófilo Braga, primeiro defensor da ideia, era suspeita aos corrilhos do Paço. Aliás, a incumbência de fixar em definitivo o programa do Tricentenário impendera sobre Teófilo e também sobre Ramalho Ortigão. Ora, o muito conhecido autor d' As Farpas, com a pedagogia de contorno positivista que imprimira aos famosos caderninhos, também não reunia, por esta altura, especiais simpatias junto dos áulicos da realeza. A imprensa oficial tentou trivializar o evento. A Igreja alheou-se dele. A grande aristocracia e a burguesia opulenta deram-se a uma neutralidade postiça.
Chegou, finalmente, o aguardado dia 10 de Junho de 1880. Lisboa engalanou-se e fez-se moça. Um colorido cortejo cívico percorreu algumas das ruas da Baixa, com os seus carros alegóricos – da Agricultura, da Instrução, do Comércio, de diversas colectividades e agremiações e de distintos ramos de actividade – por entre a alegria esfuziante dos estudantes e o aplauso cúmplice dos populares, que aplaudiam a partir de passeios apinhados. Troava a artilharia sincopadamente, ao mesmo tempo que o estampido de foguetes, lançados a partir do Castelo de S. Jorge, espalhava nos céus pequenas nuvens de fumo. O préstito cívico iniciou a sua movimentação a partir do Terreiro do Paço, onde se encontrava instalado o pavilhão real. Mas junto dele as aclamações baixaram de tom. Houve bandeiras de colectividades que não se curvaram em saudação a D. Luís. E este, por sua vez, negligentemente, também não se dava ao esforço de corresponder às saudações, conversando e galhofando com amigos, ministros e Pares do Reino. Imperturbável, o cortejo coleou na direcção do Largo do Pelourinho, calcorreando as ruas Augusta, do Ouro e do Arsenal. Subiu depois a Rua Nova do Almada e irrompeu no Chiado, invadindo a simbólica Praça de Camões. E logo desceu a Rua do Alecrim, para se dissolver no Cais do Sodré.
O episódio deste latente divórcio entre as turbas populares e a monarquia foi imediatamente aproveitado pela propaganda republicana. Rafael Bordalo Pinheiro logo desenhou no seu O António Maria a figura de Camões, de cabeça coberta por um barrete frígio, agradecendo a um D. Luís contrafeito e minúsculo, a honra de o ter feito republicano. Pela forma inábil como o regime vigente se comportou, o Tricentenário de Camões foi arvorado em símbolo por todos os que sonhavam com outros rumos, mais democráticos e benfazejos. A republicanização de Camões, ícone imorredoiro da Pátria portuguesa, significou, para muitos, o ponto de viragem para um outro e melhor destino.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem