Um republicano chamado Rafael Bordalo Pinheiro
E Portugal? Desde os tempos da aventura náutica das descobertas se declarava, nos textos emblemáticos de Camões, Fernão Mendes Pinto, Sá de Miranda ou Damião de Góis, que o mediano português da saga embarcadiça revelava um fundo de obediência misturado com uma ponta de rebelião, uma capacidade ímpar de se adaptar a “desvairadas gentes” e a regiões de fim-do-mundo, mas nos moldes de uma infinita saudade, chorada em plangências de fado ou em lágrimas de sal. Contudo, jamais esta inquietação topa-a-tudo, esta arte de partir querendo ficar ou de permanecer desejando zarpar, jamais este traço anímico da nossa contradição lusíada, encontrara o artista-demiurgo que pudesse e soubesse cruzar linhas, harmonizar planos, propor uma tipologia fisionómica, adivinhar vícios e exaltar virtudes, misturar as sombras da hipótese com a luz da Verdade e escrever por baixo: “Nós, enquanto Povo, somos assim. Nem mais, nem menos!”. Mas um dia, à esquina da nossa multissecular forma de ser, assomou um simples desenhador capaz de oferecer corpo e rosto ao Portugal popular de então, conquistando a imortalidade através desse mesmo impulso premonitório. Chamava-se Rafael Bordalo Pinheiro. À sua magna criação deu o nome de Zé Povinho.
Filho de um funcionário da Câmara dos Pares, figura paterna pouco burocrata e dada preferencialmente às artes, irmão mais velho de Columbano – um dos nossos maiores pintores – Rafael Bordalo Pinheiro desejou, nos primórdios da sua juventude, uma carreira teatral que lhe fugiu. Que lhe fugiu? É uma forma imprópria de dizer. Mais rigoroso é declarar que se tratou de uma vocação que sofreu um câmbio de metamorfose transfiguradora. O palco passou a ser o papel de desenho, o desempenho transferiu-se para o seu lápis, os actores, para além dele próprio, desdobraram-se na imensa galeria das figuras relevantes do seu tempo e, finalmente, as suas peças identificaram-se com os jornais que fundou e ilustrou. O Zé Povinho surgiu nos primórdios da sua carreira, adornando A Lanterna Mágica, no verão de 1875.
Chamado ao Brasil, onde fez uma multidão de amigos entre os cultores da boémia artística e um pequeno reduto de rancores entre os magnatas da Finança e da Política, Rafael Bordalo Pinheiro brindou as Terras de Vera Cruz com as folhas O Mosquito, Psit!!! e O Besouro. O Zé Povinho foi com ele, aparecendo como comparsa menor em crónicas figuradas da realidade social do povo irmão. Por esta altura, já Rafael Bordalo Pinheiro era republicano; e também maçónico, pois fora iniciado, antes do périplo brasileiro, na loja “Restauração de Portugal”. Fiel a si mesmo, escolheu como mentor iniciático o pintor espanhol Goya, essa espantosa figura de artista, na qual se combinam as notações grotescas e as visões de pesadelo, o escarninho dos rostos e as denúncias da crueldade.
Regressado a Portugal, a vida do “irmão Goya” identificou-se totalmente com a sequência dos seus jornais. Foram eles O António Maria (primeira série, entre 1879 e 1885), Pontos nos ii (entre 1885 e 1891), outra vez O António Maria (segunda série, entre 1891 e 1893) e finalmente A Paródia (entre 1900 e 1905/06). Neles traçou, com o vigor do riso, o perfume da ironia, a bravata da sátira e a pesada denúncia do burlesco, a crónica mais exaustiva que alguma vez surgiu em Portugal, no decurso de cerca de um quarto de século de história pátria. Chegam à boca da cena monarcas (D. Luís, D. Carlos, Dona Maria Pia) e ministros (Fontes Pereira de Melo, Anselmo Braancamp, Rodrigues Sampaio), financeiros (Burnay), escritores (Ramalho, Eça, Junqueiro, Antero) e figuras típicas (o Justino bailarino, o Santos “Pitorra”). E tantos, tantos mais.
Rafael Bordalo Pinheiro finou-se em 23 de Janeiro de 1905. Mas o pano de boca não correu. A comédia continua. E o Zé Povinho voltará sempre, nas asas dos que o amam, quase tanto e tão bem como Bordalo o amou.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem