José Elias Garcia
A geração republicana que actuou entre 1870 e 1890 pode designar-se por geração doutrinária, pedagógica ou evolucionista. Estas designações mantêm entre si um nexo de profunda afinidade. Os propagandistas assumiam-se como doutrinadores de uma nova tábua de valores sociais; e essa doutrina devia ser ensinada às camadas mais desprotegidas da população através de uma pedagogia clara e simples; finalmente, todos esses republicanos tinham a consciência de serem uma vanguarda numericamente rarefeita, o que afastava completamente a hipótese de recurso a soluções violentas, de tipo revolucionário. Doutrinar, educar, fazer evoluir a maior parte da população – eis as linhas programáticas que deveriam ser levadas à prática, consoante as exigências, necessidades e forças de cada momento. A dimensão evolucionista era aceite com tão grande naturalidade que alguns dos primeiros centros republicanos se apresentaram como eleitoralistas, nomeando-se a si próprios como Centros eleitorais republicanos democráticos.
Este pendor obrigatoriamente pacífico, contemporizador, esta contemplação idílica de uma República a conquistar quando estivesse concluída, num amanhã indeterminado, a educação popular, encontrou em José Elias Garcia o seu mais notável e notório intérprete. Filho de um combatente liberal que conhecera as perseguições absolutistas e os cárceres miguelistas, portador de um livre-pensamento que lhe amparou a escalada para o Grão-Mestrado maçónico, professor distinto da Escola do Exército, fazendo jus à sua condição de Oficial superior, José Elias Garcia foi um elemento fortemente estabilizador da sociedade e da política do seu tempo. A opinião monárquica mais próxima do radicalismo liberal tinha-lhe respeito e aquela outra que afinava diapasões por claves conservadoras não o aborrecia. Ele era visto como uma espécie de flor de adorno das conveniências monárquicas. A verdade é que a aristocracia realenga, conhecendo embora o seu ideário, não deixava de lhe confiar missões e lhe dirigir convites. O bispo de Viseu, D. António Alves Martins, e o Visconde de Sá da Bandeira, cobiçaram os seus préstimos, fazendo-lhe saber que gostariam de contar com ele em funções ministeriais. A sua bonomia e circunspecção, a sua inegável capacidade de diálogo, o seu gosto de responder afirmativamente a todos os que requisitavam os seus empenhos, sem distinguir os campos políticos de onde partiam as súplicas, identificavam-no como um homem probo, simpático e confiável. Por isso, foi acumulando, sem oposições, um rosário de cargos oficiais e corporativos. Passou pelo Conselho Geral de Instrução Militar e pelo Conselho de Instrução Naval, presidiu à Junta Departamental do Sul e à Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, foi vereador da Instrução da Câmara Municipal de Lisboa, antes de nela ocupar a presidência.
Como sempre acontece em casos similares, José Elias Garcia viu gravitar em torno do eixo da sua invejável influência pública toda uma pequena legião de satélites. Por isso, as correntes republicanas mais intransigentes não lhe poupavam sarcasmos, designando os seus protegidos por filhotes do Garcia ou simplesmente por garcias. A sua bondade ou complacência passava por transigência ou por cálculo aos olhos dos oponentes.
A figura de Elias Garcia não ficaria suficientemente caracterizada sem uma alusão à sua notável actividade no jornalismo. Fundador de vários jornais, redactor de mais uns tantos, a sua obra mais significativa acolheu-se à sombra daquela folha que mais favoreceu a mensagem republicana antes da fundação do jornal O Século. Referimo-nos à Democracia, órgão doutrinário da corrente menos radical do evangelho democrático. É inimaginável a importância deste periódico no contexto de uma Lisboa cheia de refegos aburguesados e de preconceitos pé-de-boi. Metodicamente, sem apavorar ninguém, José Elias Garcia converteu a sua Democracia na catapulta discreta ao serviço de uma demolição silenciosa. Os fundamentos da futura Lisboa jacobina iam ser construídos, pedra a pedra, por este republicano – com quem o Paço simpatizava – e por este jornal – que até os monárquicos liam…
Publicado por Amadeu Carvalho Homem