Génese do imperialismo europeu
A génese do imperialismo europeu marcou profundamente a propaganda republicana. É indispensável que se compreendam as motivações de uma Europa em crise de crescimento industrial. Evite-se, acima de tudo, a leitura preconceituosa ou anacrónica do expansionismo colonialista. O Antigo Regime só foi vencido porque os estratos burgueses ascendentes, medindo as forças próprias e as alheias, decidiram que era chegado o momento de render a coligação aristocrático-clerical no varandim da hegemonia social. Isto foi acompanhado de uma nova forma de produção de bens materiais que contrariou a lógica agrária e substituiu o artesanato tradicional pela manufactura, primeiro, e pela imaginosa generalização da maquinaria industrial, logo de seguida. Esta industrialização era inevitável – e é isto que as diversas cartilhas do mecanicismo histórico se recusam a entender. A população europeia crescia sem retorno desde os meados do século XVIII. Se os mesteirais da Idade Média, com o seu culto canónico da obra-prima e a sua correlativa lentidão laboral, podiam corresponder às exigências de vida de populações estacionárias ou até regressivas (lembremos a calamidade da peste negra), o seu ritmo produtivo era impotente para satisfazer as necessidades de vastas massas populacionais, com mais dilatadas e sustentadas esperanças de vida. Se a industrialização foi o patamar burguês de uma inovadora iniciativa económica, ela não deixou de ser também – e talvez sobretudo – a única possibilidade que se colocava ao sistema produtivo para alimentar, vestir e calçar uma cada vez mais incontável legião de carenciados (hoje chamamos-lhes consumidores). A Europa desenvolveu o seu potencial mecânico até ao nível da saturação. Queremos com isto dizer que a produção industrial, impulsionada pelo incentivo do lucro e pela justificação da utilidade real, haveria de reconhecer o momento em que só o primeiro subsistia e em que o segundo se evolara. A fábrica, em sentido genérico, inundara o mercado tão copiosamente que este deixaria de comprar as suas mercadorias. O problema que então se colocou foi este: como continuar a manter os níveis económicos e as expectações dos seus agentes?
A Europa olhou então, uma vez mais, desde o tempo das grandes descobertas marítimas, para além de si mesma. Excedentária em mão de obra e em produtos acabados, traçou a estratégia de exportar para mundos desertificados ou semi-vazios o que nela própria se revelava sobrante. As duas Américas, as ignotas paragens da Austrália e da Nova Zelândia, assim como a enigmática África, poderiam ser a alternativa de escoamento das gentes sem trabalho e das mercadorias por vender. Foi assim que nasceram outras civilizações industriais, geograficamente muito remotas da matriz europeia, mas incontestavelmente marcadas pelas suas virtudes e estigmas.
Desde a primeira descoberta do seu imenso perfil, a África foi pouco mais do que uma promessa adiada. Os colonizadores primitivos – espanhóis, britânicos, holandeses, portugueses – assumiram perante ela uma postura de desconfiança. Terra de escuridões pigmentares, de palustres sezões, de orografias e hidrografias simplesmente supostas, a África era demandada por uma navegação de cabotagem, sem a pretensão de lhe explorar a interioridade e de lhe desvelar os íntimos mistérios. Trocava-se, junto à costa, o marfim dos elefantes por panos coloridos ou por garrafas de aguardente. O café em grão era descarregado nos porões por negros violentados pelo jugo do soba ou pela brutalidade do mareante cúpido. Esses carregadores não raramente foram associados à própria carga como escravos, sem que lhes fosse respeitado o querer ou salvaguardado o arbítrio. Portugal não diferiu deste modelo. A África começou por ser, para os nossos, apenas uma costa, uma fímbria de areia ou uma escarpa mais agreste, onde os nautas marcavam a sua passagem através das inscrições de Ielala ou dos padrões encimados pela cruz de Cristo – de um Cristo indiferente, afinal, à sorte dos gentios acorrentados. Mas a imagem africana iria mudar significativamente a partir de cerca de 1870. Passou a ser mais amada pelos que aí aportaram? Não. Passou simplesmente a ser mais cobiçada por aqueles que a viriam, pouco depois, a violar selvaticamente, em nome do que chamavam … Civilização.
Publicado por Amadeu Carvalho Homem